CONTEXTUALIZAÇÃO MISSIONÁRIA

(Barbara Helen Burns - A autora do texto é americana, radicada no Brasil há mais de 40 anos, servindo nas áreas de despertamento, preparo e envio de missionários transculturais. Ela tem o mestrado em missões do Denver Seminary em Colorado, EUA, e o doutorado em missões do Trinity Evangelical Divinity School em Chicago. Barbara tem participado da Comissão de Missões da Aliança Evangélica Mundial, ajudado na produção de livros, escrito vários artigos e capítulos de livros, e ajudado no planejamento de congressos missionários, como COMIBAM, os Congressos Brasileiros de Missões e o 1º Congresso Nordestino de Missões em Caruaru, 2002. Ela foi fundadora (1984) e depois Secretária Executiva da APMB (Associação de Professores de Missões no Brasil) entre 1992 e 1999, quando saiu de São Paulo).



A palavra “contextualização” soa bonito em português. Logo entendemos o sentido: “contexto”, “dentro do contexto”, “adaptação ao contexto”, “processo de se entender com o contexto”. A facilidade da palavra, no entanto, é enganosa, pois não existe uma definição certa. O dicionário do Aurélio não traz nenhuma menção da palavra, e os vários livros e artigos que tratam do assunto põe nela significados diferentes e particulares. Por isso falamos de “contextualização missionária”, “contextualização cristã” ou “bíblica” para realmente distinguir nossa intenção do uso da palavra no contexto evangélico e missionário.


Definições

“Contextualização” foi usada pela primeira vez em 1972 por Shokie Coe, diretor da Fundação de Educação Teológica (FET) do Concílio Mundial de Igrejas. Enviou uma carta aos seminários e institutos bíblicos ao redor do mundo oferecendo ajuda com literatura e outros meios para que as escolas de educação teológica pudessem “contextualizar” os seus programas. Para ele “contextualizar” era fazer a Palavra de Deus, que a Bíblia apenas contém, se tornar relevante no contexto. A ênfase da FET era o contexto em que a Bíblia deveria se adaptar. Esta relativização bíblica já tinha larga aceitação no meio das igrejas concíliares, mas foi rejeitada pelos evangélicos. A palavra “contextualização”, porém, foi aceita e desenvolvida.

O primeiro evangélico a usar a palavra contextualização foi Byang Kato, um líder africano. Na sua palestra em Lausanne I (1974) ele enfatizou a necessidade de transmitir o evangelho em termos relevantes à cultura receptora, ao mesmo tempo cuidando para não fazer sincretismo. Ele estava preocupado com o perigo da contextualização criar uma distorção do evangelho e da teologia. Cultura é importante, mas na transmissão da verdade a mensagem e sua aplicação prática têm que ser fiéis à Bíblia. A cultura tem que se adaptar à Bíblia e não vice versa. Por isso Kato apresentou dez fundamentos para a contextualização na Àfrica.
1. Deve-se permanecer com os pressupostos fundamentais do cristianismo histórico.

2. Deve-se expressar cristianismo no contexto africano, deixando que o julguem. Não devemos permitir que a cultura tenha precedência sobre cristianismo.

3. Deve-se ensinar as Escrituras e as línguas originais para que eles possam fazer uma exegese correta da Palavra de Deus. O africano também pode aprender hebraico e grego.

4. Deve-se estudar as religiões não-cristãs, lembrando que é secundária, como foi para os evangelistas no Novo Testamento.

5. Deve-se fazer evangelismo agressivo, não repetindo os erros dos líderes da igreja africana do 3º Século, quando se envolveram demais em discussões doutrinárias.

6. Deve-se formar organizações baseadas naquilo em que concordam. Não deve ser “unidade, seja a qualquer prêço”.

7. Deve-se definir termos teológicos para evitar sincretismo.
8. Deve-se combater cuidadosamente os sistemas não bíblcos que estão entrando nas igrejas.

9. Deve-se envolver em ação social, mas não às custas da evangelização. Conversões verdadeiras resultam em cristãos que revolucionam as suas sociedades.

10. Deve-se saber que a Àfrica precisa dos seus Policárpios, Athanasiuses, e Martinhos Luteros que estão prontos a defender a fé, seja a que prêço fôr.[1]

Após o momento histórico do Lausanne I, o termo contextualização alastrou-se tanto em círculos evangélicos, como na Teologia da Libertação, na Igreja Católica Romana, em outros movimentos nacionalistas e, no presente momento, até no mundo secular. Cada grupo adotou a palavra e usa-a conforme seus objetivos e motivos. A definição e preocupação de Byang Kato, no entanto, ainda serve como uma base para a avaliação do uso do conceito de contextualização entre evangélicos.
Kato e outros missiólogos evangélicos adotaram a palavra em grande parte para expressar a necessidade da transmissão relevante da Palavra de Deus sem abrir mão da sua vericidade e aplicabilidade em todas as culturas. Hoje em dia temos muitos recursos que nos ajudam fazer o processo de tornar os ensinamentos da Bíblia claros e relevantes às pessoas em outros contextos. Nos últimos anos muitos livros e artigos foram escritos sobre a contextualização e as escolas de missões estão incluindo este assunto nos seus currículos. O ano passado 52 missiólogos foram convocados pelo Comitê de Lausane para discutir sobre contextualização. (Uma outra convocação foi feito em Willowbank, Bermuda em 1978. O resultado de Willowbank é o livro O Evangelho e a Cultura , Série Lausanne 3. ABU Editora e Visão Mundial, 2ª edição, 1985.) O editor da revista de Lausanne World Evangelization descreve a palavra assim:

. . .para construir sob Willowbank, e procurar uma compreensão mais profunda em mudar de contextaulização como um método para contextualização como um estilo de vida e aprendizado, e uma maneira de ser totalmente humano. Contextualização deve ser uma atitude de risco baseado no reconhecimento que Jesus escolheu a confiar as boas novas do evangelho para seres humanos falhos.
Contextualização deve ser uma atitude de interdependência, crendo que nenhuma cultura pode enshergar seus próprios pontos cegos e que cada cultura tem algo a oferecer para todas as outras culturas.
Contextualização é também um verbo: Uma comunidade de crentes ouvindo, compartilhando, aprendendo e reprovando uma a outra pela possibilidade de descobrir um entendimento mais profundo do evangelho do reino (World Evangelizations. Nº 80. Setembro/outubro de 1997).
O que distingue evangélicos é sua dependência na Bíblia com a autêntica Palavra de Deus, inspirada e verdadeira. A própria Palavra trata profundamente do assunto e deve nos ajudar na compreensão da contextualização. De verdade a melhor fonte de compreensão do assunto é a própria Bíblia.

Contextualização na Bíblia
Na Bíblia há contextualização. Na busca das nações, o próprio Deus se preocupa em comunicar e agir com sabedoria e prudência (Ef. 1:8). Ele formou uma nação (Israel) em que Sua presença era visível à todas as nações. A finalidade da escolha dela era que manifestasse a glória de Deus ao mundo pela sua santidade e os atos poderosos de Deus (inclusive castigos) no seu meio. Também tinha que “anunciar (verbalmente) a glória de Deus às nações” (Sl 96:3).
A vinda de Cristo em corpo humano é o maior exemplo na história de contextualização. Filipenses 2:1-11 descreve como Jesus deixou sua posição, sua glória, sua “pátria” e consentiu em ser humano, com osso e carne, sede, fome, cansaço e dor. Andou nas estradas poeirentas da Palestina, falando com os discípulos, com as multidões e operando milagres e livramento. Ele morreu como um criminoso comum, rejeitado e objeto de escárnio. Deus veio em Cristo na encarnação, em uma identificação profundíssima com a humanidade, e atravessou o abismo de separação entre os dois. Jesus comunicou e foi compreendido, deixando que os seus discípulos e a Igreja continuaassem como agentes da transformação.
Após a vinda de Cristo, a Igreja deveria continuar a busca das nações e anunciar a elas a grandeza, majestade, bondade, graça e amor de Deus. Esta igreja “está no mundo, mas não é do mundo” (Jo 17). É também sacerdote de Deus no mundo, como Israel (Ex. 19:5-6 e 1 Pe. 2:9). Esta “nação santa” é claramente enviada ao mundo nos pronuciamentos finais de Jesus. A razão da existência da igreja é cumprir estas ordens missionárias dadas no clímax da formação dos discípulos de Jesus quando da a Grande Comissão em Mateus 28:18-20, e outros lugares.
Deus, portanto, não escolheu a Igreja para fazer ghetto, mas logo no início lançou os primeiros seguidores de Jesus para os quatro ventos - através de instruções (Mt. 28:18-20; Atos 1:8, etc.), perseguição (At 8) e a escolha de certas pessoas como apóstolos ou missionários. Barnabé e Saulo começaram a primeira viagem de missões transculturais para os gentios, enviados pela igreja de Antioquia. O relato das suas viagens missionárias em Atos impressiona na maneira em que eles obtiveram o seu objetivo: falaram em termos compreensíveis aos ouvintes, deixaram igrejas organizadas com liderança local, e chamaram outros a seguir a trilha missionária junto com eles.
Isto não significa que tudo era sem problemas. Às vezes as novas igrejas não entendiam as doutrinas (como em Tessalônica) ou distorciam o que ouviam (Gálatas). Paulo preveniu fortemente os líderes da igreja de Éfeso sobre o perigo de falsos mestres, que surgiriam do próprio grupo (At 20:29-31). Ele plantava igrejas autóctones, nacionais, relevantes na cultura, mas não tinha a ilusão de pensar que relevância bastasse. Os novos membros das igrejas tinham que ter as suas vidas arraigadas nas verdades de Deus. Por isso Paulo ensinava dia e noite (At 20:31), tudo que ele sabia (At. 20:20, 27) e estabelecia firmes fundamantos doutrinárias e de conduta cristã.
Nestes exemplos e ensinamentos sobre a contextualização missionária de Jesus e dos apóstolos, especialmente Paulo, podemos aprender muito sobre o assunto. Parece que há um processo repetido, com dois passos principais. Primeiro há a identificação do mensageiro com o povo receptor; depois há o confronto com o mal e a tentativa de levar as pessoas à transformação.
Jesus primeiro veio à terra em forma humana, encarnando-se no meio dos homens e das mulheres. Depois efetuou pela palavra e pelo seu sangue a transformação. Ele não veio simplesmente para passear conosco, ou “curtir” um pouco de papo com os homens. Ele veio com uma missão: salvar os homens, levando-os ao arrependimento, perdão dos pecados e nova vida em Cristo.
No dia a dia de Jesus podemos observar esta estratégia a se cumprir. Ele fala sempre usando a linguagem conhecida do templo, da plantação, de festas e das Escrituras. Ao mesmo tempo Ele confrontava, denunciando o pecado, o orgulho e o egoísmo. Jesus foi à casa do fariseu, mesmo sendo provavel objeto de ridicularização. Aproveitou o contexto do banquete para para usar a linguagem do momento ao falar de banquete, de convites e recusas, e da ansiedade do Dono (Deus) em encher a mesa até com os de fora, apesar dos primeiros convidados (neste caso os ouvintes mesmo) insultar o Anfitrião (Lucas 14).
Quando dois dos seus discípulos queriam ser os primeiros no reino, ele chamou a atenção quanto ao desejo de posições, status e títulos (Mt 20 e 23). Para tanto ele usou dois maxi-sistemas culturais para ilustrar o errado: o sistema religioso dos fariseus e o sistema governamental dos romanos. Ele não elogia a identificação com estes sistemas, mas deixou claro que os discípulos não podiam agir de igual modo. Jesus lavou os pés dos discípulos, quebrando um costume enraigado na cultura, e falou que eles também tinham que fazê-lo. Em vez de se submeter a estes sistemas importantes na cultura, ele ensinava que a igreja não é assim. Não podemos seguir sistemas culturais que são contrários aos ensinamentos de Deus. É para ser uma igreja diferente—mensageiros da reconciliação com Deus e a libertação deste mundo, sal na terra e luz nas trevas .
A Bíblia descreve nosso mundo como trevas. Idolatria, opressão dos outros, adultério, homossexualismo, homicídio, mentira, ira, orgulho, blasfêmia, maledicência e muitas outras coisas marcam este mundo. As culturas ao redor do mundo foram contaminadas pelo pecado que entrou no mundo com as mentiras de Satanás e a desobediência de Eva e Adão. Entre os costumes dos povos há muitas coisas boas, positivas, que demonstram que fomos feitos à imagem de Deus, mas muitas outras coisas são provas da queda da humanidade e a fatal inclinação à desobediência. Carecemos todos da glória de Deus (Rm 3:21)! Somos todos mortos e escravizados sem Cristo, sem esperança e sem Deus (Ef 2:1-5, 11-23; 1 Pe 1:14-15). Precisamos de perdão e transformação. É nesta transformação que é formado um novo povo, um “templo” que efetua a sua própria edificação no Senhor (Ef 4:12-16). Deus cria uma nova cultura no seu povo - uma cultura com santidade e pureza, de pessoas que manifestam a glória de Deus nas suas vidas e nas suas comunidades eclesiásticas, à vista dos vizinhos, dos parentes, das cidades e das nações. Em Éfeso os novos convertidos trouxeram seus apetrechos idólatras e os queimaram em público. Outros “maravilharam-se” com a transformação dos crentes. Muitos ajuntaram-se à igreja de Jerusalem após ver a linda transformação de tantas vidas e a nova comunidade cheia de alegria e amor.
É claro, portanto, que contextualização não é seguir cultura; é viver na cultura e utilizar a cultura na comunicação, mas para levar as pessoas à transformação e à formação de uma outra cultura—uma comunidade que se chama Igreja.
Através da história esta nova comunidade tem crescido (o que é feito através de missões). Às vezes a comunidade se tornou gueto, sem contato com a cultura em que existia, e certas vezes perderam a sua identidade numa identificação exagerada com a cultura. É difícil descobrir a linha equilibrada no meio, mas podemos aprender com os antepassados que já lutaram com os problemas da contextualização.

Contextualização na História de Missões
Desde o início, missionários enfrentam o mesmo dilema: “Como explicar as verdades de Deus, que eu aprendi dentro do meu contexto e na minha linguagem, para pessoas que estão em um outro contexto e falam outra língua?” A resposta é simples: não é fácil!
Na história de missões temos exemplos de todo tipo de contextualização. Temos o tipo da “não-contextualização”, onde o missionário chega e impõe a totalidade das suas crenças junto com os costumes religiosos e do cotidiano do missionário. Ele passa costumes quanto à comida, vestimenta, horários, estilo de arquitetura, posição dos participantes de cultos e assim por diante. Dentro dele há uma certeza de que este povo é inculto, não sabe de nada e tem que aprender do zero como viver certo. Ele não pergunta, não ouve, não se interessa em saber os mitos, as crenças, a história, os anseios, as dificuldades ou as alegrias do povo. Ele não se importa com os porquês dos costumes do povo. Ele, simplesmente, é o certo e o dono da verdade. Infelizmente, na história, temos exemplos de missionários (não evangélicos, espero) assim que até usaram a espada para convencer os nativos a converter e serem batizados.
Do outro lado haviam os missionários que romantizavam a cultura. O missionário vai, aprende com cuidado a língua e os costumes. Ele acredita que o Deus dos cristãos se manifestou na religião daquele povo, portanto basta ficar com eles e ajudá-los continuar nas suas práticas, expressando-as até mesmo em uma igreja cristã, mas sem necessidade de transformação. Muitos missionários foram para servir em um lugar, e até ajudou com agricultura, hospitais e escolas, porém sem ajudá o povo a entender a necessidade da salvação.
Alguns exemplos na história podem nos ajudar a descobrir o caminho certo entre os dois extremos. Um exemplo impressionante de contextualização era o trabalho dos morávios no Século XVIII. Eles se espalharam ao redor do mundo e com muita naturalidade participaram do cotidiano das pessoas que viviam nos lugares onde chegaram. Eram carpinteiros e plantadores e sempre ajudavam as pessoas na medida que podiam. A identificação deles era marcante, porém levaram a mensagem firme da salvação em Cristo.
Guilherme Carey, o “Pai das Missões Modernas” deixou outro exemplo de contextualização. Chegando na Índia passou grandes privações, até mesmo fome. Com isso precisava trabalhar junto com o povo para ganhar seu pão. Com este início difícil, Carey prossegiu para marcar a cultura do sub-continente indiano no seu total. Fez umas descobertas de hortelagem para mostrar que, ao contrário do conceito hindu de maya (ilusão), a natureza era boa. Também introduziu o primeiro banco de investimentos e o primeiro jornal publicado em uma língua oriental. Introduziu astronomia para confrontar o impacto negativo de astrologia e seus fatalismos. Ajudou na criação de bibliotecas para que as pessoas pudessem ter acesso ao conhecimento. E de forma marcante, conseguiu convencer o governo a abolir a prática de sati, onde as viúvas eram sempre cremadas vivas com os corpos dos seus maridos. Para Carey o evangelho tinha que permear a totalidade da vida—na praça, no mercado, no laboratório, e na vizinhança.[2] E ele usava não só a palavra, mas agiu de formas concretas para confrontar o domínio do hinduismo sobre a mente e vida do povo.
Carey sabia que para ter uma igreja forte, tinha que ter líderes indianos. Por isso dedicou a maior parte da sua vida traduzindo a bíblia e formando escolas de preparo ministerial. As pessoas falam que Carey era “um simples sapateiro”, mas não sabem que desde criança Carey investia no aprendizado: línguas, geografia, teologia, história e missões. Ele conhecia tanto a história dos Morávios como a do Capitão Cook, um grande explorador inglês. Enquanto concertava os sapatos na juventude e depois, Carey decorava o vocabulário grego e estudava o mapa mundi pendurado na parede ao seu lado, que ele mesmo tinha feito de couro. Era professor de escola primária e pastor, concertando sapatos apenas porque o seu salário não supria as necessidades da sua família de cinco filhos. Tudo isto preparou o futuro missionário pioneiro, e ajudou-o conseguir grande êxito na sua carreira missionária.
Hudson Taylor também queria quebrar barreiras para que o povo pudesse ouvir e compreender o evangelho. Quando chegou na China ele viu que os missionários viviam nas cidades portuárias, mais confortáveis, passando a maior parte do tempo na sua comunidade estrangeira fechada. Taylor viu o vasto interior da China sem testemunho. Ele também viu que a sua roupa e a sua maneira de ser inglês ofendia e afastava os chineses. Isto levou Taylor a decidir algo que seria motivo de rejeição dos seus compatriotas ingleses, mas abriria as portas dos corações chineses. Ele trocou de roupa, usando o estilo chinês, e até deixou seu cabelo crescer para poder fazer uma trança como os homens chineses. Ele foi viver no meio deles, em casas simples, comendo a sua comida como os chineses comiam. Usava o transporte de barcos e rinquishás e enfrentou doença, perigo e ameaça, assim como os próprios chineses enfrentavam diariamente. Hudson Taylor, e os missionários que o seguiam mais tarde, espalharam o evangelho no interior da China e outros países, sempre ajudando na formação de líderes nacionais e evitando criar dependência. A Missão para o Interior da China (“CIM”, agora OMF—Overseas Missionary Fellowship) desenvolveu a prática de não pagar salários ou construções. Eles queriam que os novos convertidos logo assumissem responsabilidade na direção e sustento das suas igrejas e das suas próprias missões.
J.O. Frazer foi missionário com a CIM entre os Lisu das montanhas escarpadas no sul da China. Esta tribo, por viver em um lugar alto, não conseguia muitas plantações; viviam de ovos, raizes e outras coisas de fraco teor nutritivo. Frazer subia a pé, comia com eles, dormia nas suas cabanas ao lado deles e do fogo fumacento. Aprendeu que não podia oferecer informações sem primeiro ser perguntado, e respeitou este costume. Esperava a pergunta, “Porque o senhor está aqui?” para poder explicar a salvação em Jesus e ensinar a Bíblia. Após muitas lutas, oração e perseverança, uma família, e depois um vilarejo após outro começaram queimar as suas casas de ídolos, seus apetrechos idólatras e aceitar Cristo como Salvador e único Senhor. Logo foi formada a igreja, com líderes que Deus levantava entre o próprio povo. Eram estes líderes, não o próprio Frazer, que tinham que decidir as questões ligadas ao ensinamento bíblico e à vida dos crentes. Ele sabia ensiná-los a Bíblia, eles sabiam como aplicá-la na sua cultura.
Logo no início da igreja, foi nomeado um missionário para acompanhar Frazer, alguém sustentado pela própria igreja nova. Até o dia de hoje os Lisu têm igrejas fortes, batizam centenas de pessoas anualmente, e apesar da opressão política da China e de Myanmar (a tribo se extende até lá) continuam sendo fiéis ao Senhor.
Um dos principais contribuintes para a ciência da contextualização foi o Dr. John Nevius que atuou como missionário na China no final do século passado. Ele ficou insatisfeito com a maneira tradicional da maioria dos estrangeiros de fazer missões. Viu, como Hudson Taylor e outros missionários que questionaram e mudaram o sistema, que os missionários estavam acostumados com a vida de conforto e estavam cômodos nas vilas e colônias feitas por eles. Eles não saiam das suas comunidades de estrangeiros para estarem de uma forma profunda com o povo. Não estavam se identificando com o povo. Estavam alheios à língua, aos costumes, à vida diária, à comida, às crenças e ao étos do povo. Além disso formaram igrejas nos moldes das suas denominações e tradições de origem, sem passar responsabilidades para os nacionais. Com atitudes paternalistas, decidiam tudo e com o dinheiro da missão, pagavam as despesas, inclusive salários dos obreiros nacionais contratados por eles.
Nevius viu os problemas com este sistema. Sentia a dependência criada e o resultante fracasso no progresso do evangelho no meio dos chineses. Ele se frustrava com o etnocentrismo dos colegas que olhavam para os chineses como inferiores e incapazes financeira, intelectual, e espiritualmente de desenvolver o trabalho de Deus no local.

Nevius desafiou o sistema com um documento, tentando mostrar aos missionários um trabalho mais perto da Bíblia. Os pontos apresentados foram:

1. Cada crente é um mestre e um aprendiz - os missionários também!

2. Cada crente funciona de acordo com os seus dons e deve ser ajudado a desenvolver o seu dom. Não há um dom maior do que outro.

3. O missionário nunca deve ser um pastor, mas com itinerância ajudar outros a serem pastores em vários lugares.

4. Cada crente deve permanecer onde está - no seu trabalho, etc. (sem “aldeias cristãs”) e testemunhar. Cada crente é um missionário.

5. Métodos e estruturas eclesiásticas devem ser desenvolvidas apenas a medida que as pessoas do lugar possam tomar responsabilidade do mesmo. Eles tinham que se governar.

6. A própria igreja deve chamar aqueles dos seus qualificados para a liderança, quem a igreja podia sustentar.

7. As igrejas tinham que ter arquitetura coreana - feita pelos coreanos dos seus próprios recursos. Cada igreja era independente da missão.

8. Todos tinham que fazer muitos estudos bíblicos, inclusive através de cursos intensivos, estudos pessoais e em conjunto com os membros da igreja (inclusive o missionário).

Os colegas de Nevius na China não aceitaram as suas idéias. Mais tarde outros missionários, os primeiros a chegar na Coréia, o convidaram para passar as férias com eles, aproveitando o tempo para explicar as suas idéias. Ele foi e com isso começou a missão cristã na Coréia, usando o “Método Nevius”, como ficou conhecido mais tarde. O sucesso da missão presbiteriana e outras na Coréia em parte é atribuída à passagem de Nevius por duas semanas nas suas férias!

Roland Allen foi outro bem conhecido pensador sobre contextualização. Missionário experiente, e diretor da Missão Anglicana na Inglaterra no início deste século, Allen falava e escrevia sobre o mesmo problema que preocupava Nevius, Hudson Taylor e outros. Em alta voz, que em grande parte caia sobre ouvidos surdos, Allen desafiou as missões a voltarem para o exemplo e ensino da Bíblia. Ele pedia para confiar no Espírito Santo, que dava também capacidade aos nacionais. Pedia para desistir de pagar as contas, deixando que os novos convertidos assumissem as responsabilidades das suas construções e salários dos seus obreiros. Lastimou que no mundo inteiro ainda havia igrejas que pareciam umas com as outras, todas iguais às igrejas européias ou americanas. Em vez de ajudar, os missionários conseguiram às vezes inferiorizar os nacionais ao mostrar a extrema pobreza pelo constrast do estilo de vida dos missionários. Os missionários deram o peixe, “não ensinava a pescar”.
Na área de contextualização que envolve a tradução da Bíblia, Eugene Nida é o mais conhecido pela sua idéia de “Equivalência Dinâmica”, a necessidade de traduzir o sentido da idéia original sendo comunicado. É o oposto da tradução formal, ou tradução de simples formas, sem levar em consideração a interpretação dos ouvintes. Uma tradução formal estreita nem usaria a língua do povo receptor, como antigamente na Igreja Católica Romana quando a missa e a leitura da Bíblia era em latim, tanto em Roma como no Brasil ou na Àfrica. É o extremo, porém fazemos a mesma coisa às vezes quando tentamos traduzir palavra por palavra, sem levar em consideração os significados diferentes destas palavras nos contextos diferentes. Isto acontece mesmo dentro de uma só cultura, quando a mesma palavra tem significados diferentes, e se mudar o significado apropriado, distorce o texto. “Jóia”, comentando de uma refeição excelente, ou uma coisa que gostamos, e “jóia” de um brilhante no dedo da noiva, são duas coisas diferentes.
Nida teve o cuidado de explicar, no seu livro, Meaning Across Cultures (Eugene A. Nida e William D. Rayburn. Orbis Books, 1981) os limites de “Equivalência Dinâmica”, pois alguns tinham usado esta idéia para propor um relativismo, não só lingüístico, mas em todos os aspectos da contextualização. Nida assegura que existem conceitos que não podem ser modificados, principalmente fatos históricos, especialmente fatos ligados a símbolos religiosos. Jesus de verdade morreu numa cruz e não podemos ensinar que morreu afogado só porque em nossa cultura não existe punição de morte em uma cruz. Os israelitas realmente mataram cordeiros na Páscoa; não podemos dizer que mataram porcos, especialmente porque fica claro na Bíblia que Deus proibia o uso de porcos na dieta israelita. Estas tentativas exageradas de explicar em termos culturais as verdades bíblicas podem ser sinais de paternalismo e etnocentrismo. O missionário que faz isso tem a tendência de pensar que ele mesmo possa entender estes fatos, mas o povo “simples” com quem ele trabalha, não tem a mesma capacidade. Nida recusa-se a aceitar esta aplicação da sua teoria de “Equivalência”. Em casos históricos fora da experiência local, o missionário tem que ensinar o que é o objeto ou acontecimento, para levar o povo à compreensão. Não é lícito modificar à vontade os fatos.

Charles Kraft é um que utilizou a teoria de Nida e aplicou-a para uma relativização em quase todos os aspectos da cultura. Ele criou uma teoria chamada “Etnoteologia”, onde a Bíblia deve ser explicada conforme a cultura. A contribuição positiva de Kraft é que nos ajudou a juntar três matérias: antropologia, teologia e missiologia. (É essencial que não apliquemos uma, sem que as outras duas sejam consideradas.) Kraft, porém, colocou a cultura e a antropologia como o intérprete das outras duas. Para ele a Bíblia não é normativa; é um “livro de casos” onde podemos ver exemplos de como Deus agia no passado entre duas culturas. Não é aplicável hoje, pois o missionário tem que descobrir como Deus vai agir hoje na cultura onde está trabalhando. É como se fosse começar do zero na atuação missionária, sem ter verdades concretas e definidas a ensinar.

Muitos missiólogos apreciaram Kraft, mas reagiram contra as suas colocações mais radicais. Se tirar a Bíblia como normativa na proclamação cristã e na formação de discípulos de Jesus, “ensinando-os a guardar tudo” que o próprio Jesus ensinou (Mt 28:19-20), de onde o missionário vai tirar estes ensinamentos? Sem a Bíblia, missões se torna muito mística, intuitiva e individual. Cada um poderia inventar teologias e práticas à vontade. Anularia textos como 2 Timóteo 3:16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o home de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” Não haveria unidade na igreja universal, pois as igrejas não teriam conhecimento para poder compartilhar as doutrinas e experiências baseadas na Bíblia.
Harvie Conn, ex-missionário na Coréia e atual professor no Westminster Seminary em Philadelphia, explica que “contextualização” envolve “descontextualização”—a mudança de traços culturais contrários à vontade de Deus. Enfatiza que o “diálogo” entre a cultura e o cristianismo é realmente mais um “monólogo” onde temos que ouvir de Deus em primeiro lugar, conhecê-lO e buscar entendimento da Sua vontade para obedecê-la. A compreensão da cultura é essencial para saber pôr em prática a vontade de Deus, mas não determina esta vontade. No seu livro, uma exposição escrita a partir de um debate com Kraft, Conn usa o título “Palavra Eterna e Mundo em Mudança (Eternal Word and Changing Worlds). A Palavra não muda, o mundo está em constante mudança dinâmica. (Alguem disse, “Quem casa com a cultura, fica logo viúva”.)
Paul Hiebert, nos seus escritos sobre antropologia e contextualização, usa a terminologia, “contextualização criteriosa”. Em outras palavras, há critérios para a vida cristã e para a igreja de Deus. Estes critérios são explicados na Bíblia. Ninguém tem uma perfeita compreensão dos ensinamentos bíblicos, mas quando juntamos pedaços da igreja ao redor do mundo, com as compreensões de diferentes pontos de vista culturais, podemos chegar mais perto da verdade da Palavra. Inclusive à medida que vamos chegando para o centro da verdade, vamos chegando mais perto um do outro.
David Hesselgrave é um dos missiólogos que tem escrito sobre a contextualização, tentando colocar em perspectiva a contextualização sem limites de Kraft e o significado da espressão “Palavra de Deus” dos líderes da comissão da FET. Ele escreve:

Fica evidente nessas definições que os evangélicos conservadores têm lutado para chegar a um consenso. Certas palavras-chave nessas definições—pertinente, significativo, implicações e conscientização—revelam diferenças importantes. No entanto, outras palavras e expressões fundamentais—teor imutável, exegese do texto e afirmaçõs hermenêuticas—servem para sublinhar o fato de que realmente gozam [missiólogos evangélicos, como Bruce Nicholls, George Peters, Byang Kato e Harvie Conn[3]] de um consenso no que diz respeito a questões oigadas ao ponto de partida da evangelização e da teologização, ao conteúdo do evangelho e à autoridade suprema em todas as questões de fé e prática. Tudo isso encontra-se na Palavra de Deus escrita.” (A Comunicação Transcultural do Evangelho: Comunicação Missões e Cultura , v. 1. EVN, p. 116).
Muitos outros contribuiram para que pudéssemos ter em nossos dias um acervo rico de material sobre a contextualização missionária. Temos biografias e livros textos que tratam exatamente deste assunto. Exemplos tremendos de contextualização estão disponíveis a nós, tirando qualquer desculpa que nós teríamos em não fazer uma contextualização missionária bíblica. O problema é que frequentemente ignoramos esta riqueza de conhecimento, seguimos as nossas trilhas da melhor maneira aos nossos olhos, e repetimos exatamente os mesmos erros que os homens do passado e presente têm tentado nos ajudar evitar! Caimos pessoalmente no pecado do paternalismo e etnocentrismo, e frequentemente não sabemos definir o que é pecado na cultura onde estamos vivendo e trabalhando. (Ou denominamos algo como pecado que na verdade não é, ou deixamos passar algo que diante de Deus é pecado.)

O Que É Pecado?
Uma questão central da contextualização bíblica é o pecado. O alvo do missionário é ensinar a guardar o que Jesus ordenou (Mt 28:19). Isto é, formar discípulos que são seguidores de Jesus em tudo que é a Sua vontade. É formar igrejas que pela santidade de vida são espelhos de Deus aqui na terra. Por isso Deus foi tão rígido com Israel quando pecavam. Pela mesma razão Ele zela pelo testemunho das igrejas—para que o mundo conheça o Senhor e O glorifique. O pecado impede cumprir a finalidade de Deus para Seu povo, e prejudica a vida do crente.
O que, então, é pecado? Arrependemo-nos de quê? Antes de falar de arrependimento o missionário tem que deixar claro de que se trata. Para fazer uma contextualização, é necessário entender o que é de verdade pecado, aquilo que será transformado e perdoado.
Alguns pecados são bem descritos na Bíblia, Antigo e Novo Testamentos. Não são idéias abstratas ou filosóficas, mas proibições claramente definidas. Chamamos estes ensinamentos sobre o proibido em qualquer cultura e em qualquer época de verdades “supraculturais”—são ensinamentos que servem para todos os membros da igreja de Jesus Cristo na face da terra. Estes são os limites que os missiólogos Hesselgrave, Conn, Nida, Nicholls e Hiebert defendem. Exemplos incluem a proibição de cohabitar com alguém que não é cônjuge; matar o próximo, inclusive sacrificar gêmeos ou fetos; proibido ignorar as necessidades do “vizinho” (no sentido do Bom Samaritano, onde todos são vizinhos), ou de mentir, cobiçar, envejar, etc. Ao longo da Bíblia há dois pecados básicos severamente condenados: a idolatria e a opressão social. O crente tem que amar a Deus em primeiro lugar, e amar e respeitar se próximo. Estes pecados são contra órdens claras e definidas. São universais.
Há um outro gênero de definição bíblica do pecado que é expresso culturalmente. Por exemplo: a vaidade é proibida como atitude não cristã. Mas o que é vaidade na sua cultura e nas outras? Em algumas culturas é expressa com o uso de maquiagem para homens e para mulheres. Em outras culturas maquiagem não significa vaidade, mas sim faz parte da vestimenta normal. Eu mesma fui acusada de ser vaidosa uma vez por umas freiras luteranas, da Alemanha. Tinha deixado meu cabelo crescer bastante para poder identificar-me melhor com o grupo com que eu estava trabalhando e, quando viajei com as irmãs, senti que não estavam aprovando algo. Depois de algum tempo, me chamaram e perguntaram por que eu era tão vaidosa de ter este cabelo loiro e comprido. Foi chocante! Para o povo com quem trabalhava, era “espiritual” ter cabelo cumprido; para as irmãs, vaidade. Além disso, quando fui para a minha igreja nos Estados Unidos levei outro choque quando as pessoas desconfiaram que eu tinha entrado para o movimento hippie daquela época, pois as moças hippies usavam cabelo comprido!
Outro exemplo pode ser ligado com a vestimenta. Vaidade se expressa em roupas também, além de outros valores como modéstia, pudor, licenciosidade e outros. Para alguns, o homem tem que usar calça comprida, terno e gravata. Para os pastores da Assembléia de Deus em algumas ilhas do Pacífico calça é proibida, pois os homens daquela cultura usam saias estreitas. Há enorme variedade de formas de vestir com seus respectivos significados ao redor do mundo. Para muitos muçulmanos a mulher não pode descobrir o corpo ou o rosto; para muitas tribos indígenas, apenas uma fita ao redor da cintura demonstra pudor. Para a tribo Dani, os missionários por eles enviados tinham certeza que tinham que ir bem vestidos com os grandes tubos cobrindo a genitália, e levaram tubos para os povos que foram evangelizar, pensando que eles também tinham que se vestir decentemente como cristãos.
Estes são exemplos entre muitos de como é importante descobrir o significado destes traços, e não somente entrar com nossas idéias daquilo que seria “vaidade” ou pecado. No entanto, é imprescindível que o missionário conheça profundamente a Palavra de Deus para saber o que Deus quer do Seu povo. Não basta depender das nossas explicações tradicionais, ouas nossas expressões destas coisas.
Antes da palavra “contextualização” ser usada, a identificação cultural concentrava-se mais nestes traços culturais externos como roupa, casa e comida. Mas, junto com o conceito de “contextualização” veio uma preocupação com outros pecados mais profundos: opressão social, sistemas políticos severos, distância social entre os que têm e os que não têm, castas, relações internacionais. Seguindo o exemplo de Carey, o missionário deve estar atento em ver o que pode fazer para ajudar os cristãos a serem fiéis nas suas sociedades, sem seguir os sistemas contaminados pelo pecado. Na medida do possível, devem ajudar os outros em situações difíceis. O evangelho deve permear toda a sociedade e fazer diferença através da vida e atuação dos membros das igrejas.
Temos que, portanto, conhecer profundamente a cultura receptora para saber porque fazem as coisas, o significado para eles. O Evangelho que levamos consiste em uma mensagem de perdão. Involve arrependimento do pecado. O missionário, se vai falar da graça e misericórdia de Deus no sacrifício de Cristo deve começar a partir da necessidade do povo. Os missionários da missão Novas Tribos começam em Gênesis, mostrando quem é o homem e quem é Deus, levando a história até a morte e ressurreição de Jesus. Fica claro no seu filme “EeTaow” que o povo sentiu profunda necessidade do perdão antes de explodir em alegria ao receber o perdão de Deus em Jesus.
Quem sabe dos pecados supraculturais é o missionário, no início. Quem sabe das expressões culturais de muitos destes pecados é o próprio povo. Para fazer uma contextualização verdadeira, o missionário tem que fazer discípulos de Jesus, discípulos que vão conhecer a Bíblia e poder detectar aquilo que é ou não do agrado de Deus. A verdadeira contextualização faz discípulos de Jesus Cristo—discípulos que sabem levar para frente a evangelização, a transformação, a compaixão e a missão da igreja em alcançar todos os povos com o evangelho.
Com tudo isso, é fácil entender a necessidade de enviar pessoas para o campo que sejam conhecedoras da vida e fé cristã e conhecedoras de como viver, compreender e identificar-se com um povo estranho a ele. Têm que ser discipuladores que possam ensinar e ajudar os outros a crescerem na fé e prática da Bíblia. Há muitas maneiras para fazer isso e diferentes níveis de contextualização para o missionário.

Contextualização em Três Níveis
Talvez possemos resumir em três os níveis de contextualização: (1) na vida pessoal do missionário; (2) na comunicação ao povo receptor; e (3) na vida dos discîpulos e na igreja formada no meio do povo.

1. A vida pessoal está ligada a como a pessoa vai viver no meio da cultura receptora. Como é seu estilo de vida, sua roupa, sua casa, seu transporte? Quais são os relacionamentos pessoais, na família, com colegas e nacionais? Ele é autêntico ou paternalista e dono do conhecer? Tudo isso pode criar ou quebrar barreiras entre o missionário e o povo.
Ray Buker (Corrida Contra o Tempo, Edições Vida Nova, 1994) conta que, entre outras coisas, a sua casa grande, com portas com maçanetas importadas criava barreiras com os birmaneses. Eles não sabiam abrir a porta da sua casa. Quando Dr. Buker percebeu a dificuldade, trocou as maçanetas pela do tipo local. Mais tarde trocou a casa grande pelas coupanas do povo onde passava semanas com seu colege birmanês, evangelizando e ensinando.
Um amigo conta que chegou a um campo missionário onde a missão já tinha atuado por muitos anos. Justamente na época da sua chegada os missionários e os nacionais estavam se reunindo para tentar resolver problemas de relacionamento entre eles. Os nacionais reclamavam: “Vocês não gostam de nós. Nunca passam em nossas casas para compartilhar uma refeição!” Os missionários, chocados, se defendiam: “Mas são vocês que não gostam de nós. Nunca nos convidam para uma refeição e sempre convidamos vocês, mas vocês não aceitam!” Os nacionais explicaram: “Em nossa cultura o amigo não é convidado e vem sem convite. Vocês além de não irem, nos convidam; não são amigos!”
Lógico que não podemos mudar totalmente, ou chegar a uma compreensão plena de uma nova cultura. Primeiro, é impossível. Algumas pessoas têm mais facilidade nisso do que outras, mas cem por cento de identificação é humanamente impossível. Segundo, não é desejável adotar por completo os costumes de um povo. Todos os povos têm pontos positivos (elogiados pela Bíblia) da sua cultura, como solidaridade, fidelidade à família ou à aldeia, criação de filhos, etc. Também há pontos neutros, que existem pelo desenvolvimento da cultura e não têm aval, nem proibição bíblica, mas também existem também sempre pontos negativos, onde Satanás e a queda do homem é manifesta. Efésios 2:1-3 explica bem como somos sem Cristo:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso dest emundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhas da ira, como também os demais.
Com manifestações deste “mundo tenebroso” não podemos nos identificar e temos que ensinar, como Carey e tantos milhares de outros missionários, começando com Jesus, que a igreja é diferente da cultura. É luz e sal para o mundo.
Ouvi uma vez que um casal de missionários salvou um gêmeo recém nascido de ser levado à selva para morrer, conforme o costume da tribo. O casal levou o nenê para casa e após alguns meses comunicaram com a sua igreja enviadora do acontecido. A igreja ficou indignada e enviou uma carta exigindo que o casal devolvesse o nenê para ser morto, pois “tinham que respeitar a cultura”. Além de estar pedindo um ato que para o casal certamente seria desesperador, porque já estavam amando o nenê como o seu próprio filho, à identificação cultural não deve incluir identificação com, ou reforço dos mesmos pecados. Carey não aceitou como natural o sati, mas lutou durante anos até a sua abolição e algumas vezes pessoalmente tentou salvar a vida das viuvas.
Respondendo esta idéia de contextualização sem limites, o Patrick Sookhdeo, diretor do Instituto para o Estudo de Islã e Cristianismo em Londres escreve que os próprios muçulmanos entendem certas atitudes de missionários como fraude e decepção.
As práticas que combatam inclue coisas como encorajar convertidos ao Cristianismo a continuar indo para as orações na mesquita e de continuar a se chamar de muçulmanos. . . A Bíblia é apresentada em formato muçulmano, imitando o Al Corão, para os leitores pensar que estão lendo o próprio Al Corão. Seguem feriados islâmicos assim como o jeito islâmico de orar e jejuar (Patrick Sookdeo, “Issues in Contextualização, World Evangelization Nº 80, Sep/out de 1997, p. 7).
Apesar de impossível, e às vezes indesejável, o missionário deve tentar compartilhar a vida com o povo nos pontos aceitáveis. Eles devem sentir o amor e o respeito do missionário e não que ele se considere melhor.

2. Na comunicação é muito importante aprender a falar a língua do povo. Sem poder comunicar-se lingüísticamente o missionário ficará sempre com as mãos amarradas, limitado ao sorriso (nem sempre entendido do mesmo jeito) e aos gestos. Como vai ensinar se não sabe falar. Portanto, a prioridade para o missionário, ao chegar no campo, é aprender a língua.
Na comunicação verbal deve-se conhecer a cultura o suficiente para poder usar termos conhecidos, figuras que emocionam e tocam profundamente o coração. Para tanto, necessita de um conhecimento da história, literatura, música e poesia do povo, junto com suas formas literárias.
Um exemplo marcante disso é o Apóstolo Paulo quando chegou em Atenas e foi convidado ao Areópagus. Ele já podia falar da “religiosidade” do povo e até citou dois poetas conhecidos. Ele não começou com a Bíblia, mas com a natureza, com o Criador e com Aquele que enviou para julgar. Falou do arrependimento das “obras humanas”, onde Deus não habita e onde é pecado louvar falsos ídolos. Tenho certeza de que ele consegiu ganhar a atenção daqueles filósofos tão arrogantes da sua sabedoria! Sem este tipo de comunicação eficaz, não há contextualização.
O missionário que nnao sabe se comunicar já mostra sua falta de identificação com o povo. Há algo especial no fato do missionário se esforçar em não ferir os ouvidos dos ouvintes ou bagunçar os fatos que ele foi enviado a transmitir. Antes de fazer qualquer outra coisa, deve separar o tempo suficiente para aprender a língua verbal e não verbal.

3. Como são os resultados do trabalho do missionário: os discípulos formados e a igreja estabelecida? Como são as estruturas construídas?
É interessante verificar que frequentemente as estruturas físicas parecem com os templos do país do missionário? Têm cimento, púlpitos, formato retangular, mesmo erguidos no meio de um povo que vive em casas circulares, feitas de folhas e onde todo mundo senta no chão em um círculo.
Tive a experiência de participar de um instituto bíblico por alguns anos onde os próprios alunos tinham erquido os dormitórios, salas de aula e refeitório. Esta escola super simples tinha 100 alunos, enquanto que muitos outros seminários na mesma região, apesar das sintuosas estruturas físicas que possuiam, geralmente não tinham mais que 15 alunos. Por que? Talvez uma razão era que os alunos da primeira escola sentiam-se mais à vontade; a escola era deles.
Estruturas eclesiásticas também são importantes como forma de medir se uma contextualização bíblica aconteceu. Quem dirige a igreja? Quem participa? Quem tem ministério? O missionário dirige e faz tudo e é o pastor? Ou o missionário está ajudando os novos convertidos a descobrirem o seus dons, está andando junto, ensinando com a vida o ministério e as palavras? Os novos estão crescendo? Servindo o Senhor?
A igreja formada é uma comunidade de pessoas unidas em humildade, prontas a se sacrificarem em amor para o outro. Não são apenas domingueiros, mas uma koinonia, onde há unidade e solidariedade. O teste do nosso trabalho são as pessoas que deixamos para levar em frente o trabalho de Deus em missões. Paulo falou claramente que eles eram a coroa dele, a prova do seu sucesso. Não eram subalternos dele, mas discípulos fieis ao Senhor.
Contextualização bíblica significa que o missionário contribuiu para as verdades de Deus fossem arraigadas em uma nova cultura, que estas verdades fossem compreendidas e comunicadas para outros sem distorções e que as verdades são transformadoras, da comunidade cristã e da comunidade secular. A nova igreja é uma lâmpada que vai ser diferente na alegria, na comunhão, nos relacionamento sociais, em ajudar os necessitados, em ser justos com todos. Vai ser um espelho em que outros vão enchergar a sua necessidade e ver a resposta em Jesus Cristo.
Que tipo de missões transculturais estamos fazendo a partir do Brasil? Podemos detectar reflexão missiológica na vida dos próprios missionários, ou na filosofia das suas agências enviadoras, ou simplesmente repetimos os modelos etnocêntricos e pragmáticos que vêm sendo desenvolvidos freqüentemente, apesar dos que apelam para modelos mais bíblicos?
Com toda literatura que dispomos, com escolas de missiologia, com igrejas investigando o envio de seus jovens para missões, não temos muitas desculpas em repetir os erros do passado. Temos toda possibilidade de concertar os erros e com humildade chegar aos povos com uma mensagem de amor, graça, perdão e de transformação compreensível e visível.

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[1]Citado em Hesselgrave e Rommen, 1989:110-111).
[2]Darrow L. Miller. “Discipling Nations”. Evangelical Missions Quarterly, v. 33, Nº 1 (January, 1998):46-47.
[3]Veja a bibliografia.

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