A IGREJA E SUA MISSÃO NO PLANTIO DE IGREJAS


Autoria de: Ronaldo Lidório

O assunto plantio de igrejas deve ser observado dentro da perspectiva da missão, ou seja, o resultado do desejo de Deus que envolve a ação da Igreja.
Um dos maiores perigos existentes no processo de plantar igrejas é defrontar-se com um cenário onde a Missão da Igreja está desassociada da Missão de Deus, a Missio Dei. E isto ocorre quando a Igreja segue sua própria agenda, de plantio ou crescimento, por motivações próprias e não bíblicas. Não para a glória de Deus mas para a glória da igreja. Não para alcançar os perdidos mas para fortalecer a denominação. Não para exaltar Jesus mas para exaltar os seus líderes.

Michael Green[1] em seu comentário do evangelho segundo Mateus[2] expõe que, na Igreja Primitiva, a missão era um conceito fácil de ser compreendido. O desejo de Cristo, de ser anunciado a todos era claro para cada crente. Esta missão, porém, apesar de clara e facilmente compreendida era complexa em sua execução pois demandava sair de Jerusalém, abrir mão de uma estrutura eclesiástica local já em formação que providenciava um senso de conforto para os cristãos.
Muitos missiólogos compreendem que o plantio de igrejas, e não apenas o evangelismo individual, é um ensino contido na grande comissão, o que creio ser evidente. Hesselgrave, Johnstone e Bosch manifestam-se de forma marcante nesta compreensão expondo que o fazer discípulos da grande comissão é uma ordem que desembocaria no agrupamento dos crentes, formação de igrejas locais, expansão do Reino de Deus. Johnstone entende que fazer discípulos, batizando-os e ensinando-os a Palavra de Deus implica em “uma vasta diversidade de atividades envolvendo os crentes em uma comunidade com a qual se relacionarão e prestarão contas”[3].
Richard Hibbert expõe o pensamento de Love quando este defende a ligação entre a grande comissão e o plantio de igrejas com base em Atos 14:21-23 que contém o mais conciso relato sobre plantio de igrejas no Novo Testamento. O termo usado no verso 21 (fizeram muitos “discípulos”) vem do mesmo verbo “matheteo” usado em Mateus 28:19 na grande comissão. Estes são os únicos dois lugares em que o verbo é usado no novo testamento. Expressa o desejo de Cristo para seus discípulos na grande comissão e a partir dela Seu desejo de ver este grupo de discípulos gerando novos grupos que amam e seguem e Jesus, ou seja, plantando igrejas.
Em razão deste pensamento Hibbert menciona que: “Tenho argumentado que o plantio de igrejas é peça fundamental na Missio Dei. Sem o plantio de novas igrejas o propósito de Deus não é realizado na terra. A transformação da sociedade na direção de Deus ocorre através da sua agência, a Igreja, e assim comunidades locais de convertidos são a maior expressão de sua presença e seu desejo transformador”.[4] Assim, perdendo a Igreja a prioridade da grande comissão perderá também o caminho para o cumprimento do desejo de Cristo: uma comunidade de santos pregando um evangelho transformador e gerando, no poder de Deus, outras comunidades que seguem e amam o Senhor.

Inquieto-me ao ver uma atual verdade nas antigas palavras de Cirenius, teólogo bizantino, quando afirmou que a Igreja sofrera a tentação de desenvolver a sua personalidade e perder a sua finalidade. À imagem do primeiro homem, a Igreja também peca quando esquece o porquê está aqui e imagina ser suficiente apenas o existir. Torna-se assim tal qual uma linda rosa vermelha... a qual nasce, cresce, murcha e morre em um campo distante sem por ninguém ser vista, sem a nenhum olhar dar prazer.

Vivenciamos a tendência da errática cristã a qual tenta incluir-se nas bênçãos do evangelho e se auto excluir de sua prática: a antibíblica vontade de ver a terra arada sem por as mãos no arado.

Igreja – o conceito neotestamentário
A Igreja no Novo Testamento é o resultado de uma construção de valores e fatos. A compreensão de Igreja que os discípulos possuíam crescia em estágios bem demarcados. Em um primeiro momento havia a compreensão da Igreja a partir e ao redor dos apóstolos. Jerusalém tornou-se não apenas o palco para a permanência desta igreja como também um símbolo de centralização. Em outro estágio encontramos o conceito dos gentios que não apenas passaram a ser evangelizados a partir de Antioquia mas passaram, eles mesmos, definir o conceito crescente de Igreja nas mentes e corações dos convertidos. Em um outro estágio, após o enraizamento de igrejas locais espalhadas por todo o mundo gentílico através da dispersão dos crentes em Atos 8 e do envio de Paulo e Barnabé em Atos 13, as próprias igrejas locais passaram a plantar igrejas locais. Michael Green chama nossa atenção para este momento em que não apenas Jerusalém mas os discipulos pioneiros deixaram de ser o centro motivador do evangelismo. Agora as igrejas locais passam a olhar ao redor e começam a plantar novas igrejas.
O Espírito Santo, no Pentecoste, conferiu autoridade à Igreja para a sua Missão. Assim milhares de homens e mulheres, cheios do Espírito Santo passavam a apresentar as Boas Novas por onde quer que chegassem. Estes do caminho não possuíam ainda uma eclesiologia definida porém eram alimentados pela Palavra, a partir do ensino dos apóstolos, havia entre eles um ambiente de comunhão, dedicavam-se à oração e proclamavam a Jesus.
Creio ser relevante, para nosso estudo sobre plantio de igrejas, entendermos um pouco do perfil desta Igreja no Novo Testamento pois boa parte da problemática no processo de plantar igrejas advém da má compreensão da natureza da própria igreja pelo que a planta.
Igreja de Deus
Devemos inicialmente identificar alguns conceitos bíblicos que nos ajudarão a compreender o significado neotestamentário de “Igreja”.
Comumente encontramos no N.T. a expressão "Igreja de Deus” ("Ekklesia tou Theou")[5] o que evidencia que esta Igreja veio de Deus e pertence a Deus. É uma comunidade que possui Deus como fonte; é eterna, espiritual e universal. Não provém de elucidação humana ou de uma obsessão nutrida por um grupo de loucos há 20 séculos. Foi articulada por Deus, formada por Deus, é pertencente a Deus e permanece ligada a Deus. Independente das deturpações da fé, das ramificações que se liberalizaram, dos que se perderam pelo caminho, a Igreja permanece, pois é posse de Deus.
Desta forma a “Ekklesia tou Theou” necessita caminhar de acordo com o palpitar do coração de Deus, a quem pertence, traduzindo para sua vida os desejos profundos do seu Senhor.
Importa-nos perceber este conceito bíblico de Igreja, como Igreja pertencente a Deus a fim de construirmos nossos princípios para plantio de igrejas segundo a fundamentação da Palavra. Esta “Igreja de Deus” leva-nos a observar com muita cautela todo e qualquer movimento eclesiástico por demais personalista. Parece-me que a Igreja que é plantada e cresce de forma saudável, apesar de seguir e ouvir seus líderes, não orbita ao redor de uma ou duas figuras humanas, mas sim de Deus. Também deve nos encorajar a não nutrirmos sonhos pessoais de sermos beneficiados, como plantadores de igrejas, das igrejas que plantamos. Pertencem a Deus. Não temos sobre elas direito ou poder. Apenas responsabilidade e serviço.
Igreja local
Também no N.T. encontramos o conceito de "igreja local". Em 1o Co 1:12 vemos, por exemplo, a expressão "Igreja de Deus que está em Corinto", onde "que está" (“te ouse”) indica a localidade da igreja. Mostra-nos que os santos de Corinto pertencem à Igreja, e não que a Igreja pertence à Corinto, deve ficar bem claro. Como Igreja somos parte do Corpo e não cidadãos de uma cidade. Nos últimos 2.000 anos a Igreja adquiriu uma forte tendência de se localizar condicionando-se tão fortemente a uma cidade, bairro ou território a ponto de alguns chegarem a defender uma demarcação local impedindo trabalhos fora da sua jurisdição.
Num conceito neotestamentário "Igreja" é uma comunidade sem fronteiras e, portanto creio que há necessidade de sacramentalizarmos mais os santos e menos os templos.
É certo que o evangelho chegou até aos confins da terra através, inicialmente, de um movimento judeu. Jerusalém era o centro da Igreja de Cristo e os discípulos eram judeus em sua grande maioria. Creio que Atos 8 é um divisor de águas no conceito territorial, geográfico, da Igreja que ainda permanecia em Jerusalém, mesmo depois de ter sido revestida de poder no Pentecoste. Após Atos 8, com a forte perseguição da Igreja, os crentes foram dispersos e iam por toda parte pregando a Palavra. Em meio à crise a Igreja foi gradualmente perdendo seu apego territorial a Jerusalém e envolvendo-se com as comunidades cristãs que nasciam em território gentílico. A própria Igreja em Antioquia, enviadora de Paulo e Barnabé em Atos 13, era formada primariamente por judeus convertidos. É notório, portanto, que a visão da Igreja se expande se aproximando mais da visão do seu Senhor. Começou a compreender que a igreja local não pertence ao local, pertence ao Corpo que é dinâmico e se expande segundo o Cabeça que é Cristo.
Plantadores de igrejas devem ser limitados pela geografia ou territorialidade. Sua missão é focada em pessoas. Sejam do grupo alvo ou outros que ao seu redor estão. Da etnia que estuda ou outra que se aproxima. Onde houver uma porta aberta e um coração sem Deus, ali devemos apresentar o evangelho pois na cosmovisão do Senhor a igreja é formada por pessoas. Onde há pessoas há possibildade de vermos nascer a igreja de Cristo.
Igreja humana
Também dentro do conceito de "Igreja" nos deparamos no N.T. com um perfil bastante humano. Em 1 Ts 1:1 por exemplo vemos "igreja de Tessalônica" ("ekklesia Thesalonikeon"[6]) dando-nos a idéia daqueles que são Igreja também sendo Tessalônicos, cidadãos de Tessalônica.
Mostra-nos o fato de que por serem "Igreja" não significa que deixam de ser cidadãos, patriotas, carpinteiros, lavradores, comerciantes, desportistas, pais, mães ou filhos. "Igreja" no N.T. não é apresentada como uma comunidade alienante, mas como uma comunidade que abrange o homem em seu contexto humano fazendo-nos entender que esta Igreja não foi separada do mundo e sim purificada dentro dele.
No livro de Atos a humanidade passo a passo era chocada com a fé daqueles que "transtornavam o mundo", onde o viver é Cristo, o objetivo era ganhar almas, a alegria era a adoração, o que os unia era a verdadeira comunhão, o amor era traduzido em ações, os fortes guiavam os fracos, as dificuldades eram enfrentadas com oração, a paz enchia os corações e todos, mesmo sem muita estrutura humana, possuíam como finalidade de vida apenas testemunhar do seu Mestre. Era uma Igreja visionária formada por gente como a gente.
A humanidade da igreja é um conceito relevante para o plantador de igrejas. Ao evangelizarmos e discipularmos devemos olhar aqueles a quem servimos não apenas como almas convertidas ao Senhor Jesus mas como homens e mulheres com história, vida, linha de tempo. Eles possuem dons e talentos, fraquezas e habilidades, circulos de relacionamento, especialidades, conhecimento específico e assim por diante. Esta humanidade deve ser usada na igreja para a glória de Deus e evangelização de outros. Observar e entender o homem a partir de seu perfil pessoal ajuda-nos a conduzi-lo a ser sal da terra e luz do mundo pelo que é, tem e pode fazer.

Atos 1:8 nos expõe o princípio da prioridade. Jesus reunido com seus discípulos é questionado sobre o “tempo” para a restauração do Reino a Israel.

Igreja missionária

“Chronos” é o termo utilizado para “tempo” no versículo 6 para a pergunta dos discípulos a Jesus: “... lhe perguntavam: Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel ?” A pergunta era absolutamente escatológica pois “chronos” refere-se ao tempo humano, linear. Era uma pergunta sobre a agenda dos últimos dias. Estes discípulos indagavam qual seria o dia, mês e ano da restauração do Reino a Israel.

A forma como esta pergunta foi elaborada mostra a distorção doutrinária daquilo que era o centro dos ensinos de Jesus no último ano de seu ministério: o Reino de Deus. Quando eles perguntam: ”será este” (“touto” - indica que eles esperavam uma restauração imediata com objetivo definido, um rompante de Deus intervindo no mundo da forma como existia na época); “que restauras” (“apokathistaneis” – aponta para uma reconstrução nacional política); e o complemento “a Israel” (dá um tom político/territorial, a independência de Israel) percebemos a elaboração geográfica/temporal que estava na mente dos discípulos.

Voltando à pergunta inicial. No “será este o tempo” do versículo 6 entendemos que o texto poderia optar entre duas possibilidades mais comuns para compilar a resposta de Jesus no versículo seguinte quando o Mestre enfatiza que “não vos compete conhecer tempos ou épocas”. Para a expressão “tempos ou épocas” o texto poderia utilizar a mesma expressão encontrada no versículo 6: “chronos”. Desta forma Ele estaria dizendo que não era da competência dos discípulos conhecer o “tempo humano” (dia, mês e ano) em que o Reino seria restaurado. Assim Jesus condicionaria o assunto escatológico a um plano humanamente inteligível.

Outra opção textual seria a utilização do termo “kairos” para “tempos ou épocas” na resposta de Cristo e assim enfatizaria que “não vos compete conhecer o tempo de Deus”, ou seja, “os fatos e acontecimentos que assinalavam um momento certo ou errado de algo acontecer” nas palavras de Tertúlio Cônico. Desta forma Jesus afirmaria que não era da competência dos discípulos conhecer o “tempo de Deus”, o momento apropriado na economia do Pai para que o Reino chegasse.

Para nossa surpresa textual a expressão “tempos ou épocas” no versículo 7 utiliza ambos os termos e conceitos: “chronous kai kairous”[7] (o tempo humano e o tempo divino) e com isto o texto afirmava que a prioridade de Jesus não era escatológica (os últimos dias, os eventos finais, a consumação dos séculos) mas sim missiológica. Desta forma o versículo 8 intervém com a expressão “mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo e sereis minhas testemunhas...”. Com estas palavras Jesus explicava o Reino: Ele criara uma Igreja funcional e não apenas contemplativa, nascida para espalhar a Sua Palavra a todos os povos, em todas as gerações, até a Sua volta.

Paulo entende este princípio e em Romanos 15:20 ele explica que "aqueles que nada ouviram" são a prioridade de Deus em relação à evangelização mundial. E isto pode ser perto ou pode ser longe. Tanto em uma tribo isolada quanto do outro lado da rua. O valor de uma alma, para Deus, é o mesmo: mais que o mundo inteiro.

Igreja – o processo do envio
Olharemos para a igreja em Antioquia como paradigma de envio, compromisso evangelístico e força plantadora de igrejas. A proposta é fazê-lo sonhar com este modelo bíblico. Não foram Paulo e Barnabé que iniciaram este grande movimento de plantio de igrejas entre os gentios mas sim uma igreja, sensível ao Espírito, com a visão do Reino, temor à Palavra e pronta para servir. Igrejas plantam igrejas.

1” Ora, na igreja em Antioquia havia profetas e mestres, a saber: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes o tetrarca, e Saulo.
2 E servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado.

3 Então, depois que jejuaram, oraram e lhes impuseram as mãos, os despediram”. (Atos 13:1-3)


O versículo 1 enumera 5 líderes da igreja em Antioquia[8] descritos sob a categoria de “profetai kai didaskaloi” (profetas e mestres). “Profetes” era aquele que “falava em nome de Deus” e também utilizado no grego ático tanto para “pregador” quanto para “expositor das leis”. O “Didaskalos” é o mestre (de “didasko”: ensino) aplicado para aquele que possui discípulos e parece-me que neste caso estes “didaskaloi” estavam mais ligados à instrução dos novos convertidos em Antioquia. Nesta lista primeiramente é mencionado Barnabé o qual era “natural de Chipre”[9]. Logo após Lucas cita Simeão referindo-se provavelmente a um africano “Níger” (negro) e menciona Lúcio “de Cirene” provindo do norte da África. Também lista Manaém, colaço (“syntrophos”: irmão de leite) de Herodes e finalmente Saulo.
O versículo 2 começa com uma ação coletiva: “e servindo eles ao Senhor...”. E as duas perguntas que devem ser aqui levantadas são: quem são “eles” e como serviam ao Senhor ? Há três possibilidades para entendermos “eles” já que o texto não o define: refere-se a toda a igreja em Antioquia; ou apenas aos 5 líderes do verso anterior;ou ainda especificamente a Paulo e Barnabé mencionados separadamente logo após.

Por ausência de ligação textual creio que podemos excluir a “igreja em Antioquia” restando-nos assim os cinco líderes do versículo 1 e Paulo e Barnabé do versículo 2. De qualquer forma estes últimos são também mencionados na lista de líderes, portanto os utilizaremos como pressuposto para “eles”. Sigamos portanto para a pergunta principal: como serviam ao Senhor ?

Leitourgoi – Edificadores do Corpo de Cristo

O verbo “servindo” (leitourgounton) utilizado aqui aponta para aqueles que serviam ao Senhor como “leitourgoi”, servos. Lembremo-nos que havia três formas de alguém se apresentar como “servo” no contexto neotestamentário:

Como "doulos" - o escravo.
Nas palavras de Candus "Aquele que pessoalmente acompanha o seu Senhor para realizar os desejos do seu coração"[10]. Portanto "doulos" no contexto do Novo Testamento é aquele que tem um compromisso direto com Deus; que serve pessoalmente ao seu Senhor.
Como "diakonos" - o mordomo.
Aquele que serve ao seu Senhor através do serviço à comunidade. Na palavra o termo é usado para aqueles que, sensíveis à necessidade do Corpo de Cristo - física e espiritual - servem a Deus.
Ou como "leitourgos" - o edificador.
O termo, ligado à "leitourgia" (liturgia) não é restrito como o usamos hoje. Refere-se àquele que serve ao Senhor sendo usado por Ele para abençoar, edificar, o seu irmão. E esta é justamente a raiz do verbo que expressa que Paulo e Barnabé “serviam” ao Senhor afirmando assim que eles eram, antes de tudo, “abençoadores”, ou “edificadores” do Corpo de Cristo em Antioquia. Eram uma bênção, como se pode falar hoje.

Portanto a primeira característica apontada pelo texto a respeito destes dois homens que iniciaram a obra missionária como a conhecemos hoje não foi a competência intelectual, o título ministerial ou a profundidade teológica mas sim a fidelidade, e fidelidade de vida em relação aos de perto que os rodeavam em Antioquia.
Uma aplicação objetiva do texto seria esta: não envie para longe aqueles que não são uma bênção perto. Aquele rapaz que diz possuir um claro chamado ministerial, se não tiver primeiramente um desejo ardente pelo ministério comprovado pelo serviço em sua igreja local certamente não o terá em lugares distantes. Não está pronto a ser enviado ao seminário. Aquela jovem que insistentemente afirma ter um claro chamado ministerial para a obra missionária em algum lugar distante, se não o demonstrar onde está com os ministérios e oportunidades locais, não o fará também do outro lado do mundo. Não está pronta a ser enviada ao preparo ou ao campo.

Um plantador de igrejas que, localmente não evangeliza, sem disposição para cooperar com as excursões evangelizadoras da igreja, certamente não demonstrará nada diferente em outras paragens.

Spurgeon já falava em 1885 que “nada é mais difícil do que se mostrar fiel aos de perto que bem lhe conhecem”[11] e aqui três rápidas aplicações poderiam ser feitas.

Pessoal. Não há nada mais perto de nós do que a nossa família. Aquele que não pode ser apontado pela esposa, esposo ou filhos como leitourgos no dia a dia de sua casa dificilmente será uma bênção fora dela, seja ele um professor, pastor, missionário, crente.

Ministerial.
Líderes e pregadores que se destacam nos púlpitos e salas de aula de igrejas e seminários mas fracassam com a família, amigos e pessoas chegadas não estão prontos para o ministério. Plantadores de igrejas que são exímios no que fazem, nas ruas, praças e templos, porém não tem testemunho de Cristo entre os seus, não estão qualificados ao envio. O ministério não define o próprio ministério. O caráter de Cristo em nós o faz.

Eclesiástico.
Não há nada mais perto da igreja do que a própria igreja, os irmãos com os quais nos encontramos a cada semana. Se uma comunidade cristã não demonstra ser leitourgos, abençoadora, para aqueles com a qual convive dia a dia, culto a culto, dificilmente conseguirá fazer diferença em outros lugares, seja perto, seja longe.
Aphorizo – Separando para o envio
O texto diz que servindo eles ao Senhor, “disse[12] o Espírito Santo: separai-me...”.
O texto não esclarece como o Espírito se manifestou e falou à igreja mas toda a ação deixa bem claro que a igreja prontamente ouviu.
O conteúdo do que Ele falara foi “separai-me” (aphorisate), do verbo “aphorizo” o qual é um verbo exclusivista também usado em Mt 25:32 quando o pastor “separa” as ovelhas dos carneiros. “Aphorizo” se diferencia de “ekklio” pois não se trata de uma separação de relacionamento (foram excluídos da igreja de Antioquia) mas sim uma separação para uma função (permanecendo ligados à igreja são agora designados para uma função além da igreja local). É o mesmo termo usado nos Documentos de Cartago quando cidadãos comuns eram chamados para engrossar as fileiras do exército romano. Portanto Paulo e Barnabé seriam separados porque primeiramente haviam sido chamados[13] e não o contrário.

É bom também entendermos que “ergon” (a obra) para a qual foram chamados é um termo genérico que tanto pode significar um ato quanto uma função e poderia ser usado por ser esta obra já bem conhecida por todos na Igreja – a evangelização dos gentios – ou também para chamar a atenção para o ponto principal deste comando: não a obra, mas sim quem os chamou para esta obra. Demonstra também flexibilidade ministerial indicando que a obra pode mudar mas o chamado permanece, pois se baseia naquele que nos chamou.

A expressão “jejuando e orando” vem como um conjunto que se completa já que, segundo Stott, “o jejum é uma ação negativa (abstenção de comida e outras distrações) em função de uma ação positiva (culto e oração)”[14], e em subseqüência “impondo sobre eles as mãos...” trás a expressão “epithentes tas cheiras” que possui vasto significado para o conceito de envio missionário.
Vejamos os principais:
Sinal de autoridade. Este “impor de mãos” remonta ao grego clássico quando um pai impunha suas mãos sobre o filho que lhe sucederia na chefia da família, ou seja, uma transferência de autoridade. Para Paulo e Barnabé isto significaria que eles possuíam a autoridade eclesiástica para fazer tudo o que a Igreja faria mesmo onde ela não estivesse presente, como comunidade. É portanto ao mesmo tempo uma carga de autoridade e responsabilidade. Como igreja em Antioquia eles poderiam pregar a Palavra, orar pelos enfermos e desafiar os incrédulos, mas ao mesmo tempo precisariam também compartilhar da mesma fidelidade e dedicação que existia naquela comunidade dos santos.

Sinal de reconhecimento. Também era usado em momentos oficiais como na cidade de Alexandria quando vinte oficiais foram escolhidos especialmente para guardar a entrada da cidade que sofria com freqüentes ataques de nômades, e sobre eles “foram impostas as mãos” em sinal de reconhecimento de que eram dotados das qualidades para aquela função. Para Paulo e Barnabé consistia no fato de que a liderança da igreja reconhecia não apenas o chamado (que era claro) mas também a capacidade e dons para cumprirem a missão.
Sinal de Cumplicidade. Encontramos também no grego clássico o “impor de mãos” no sentido de cumplicidade quando generais eram enviados a terras distantes para coordenar uma província e as autoridades enviadoras impunham as mãos demonstrando ao povo que eles não seriam esquecidos, ou seja: permaneciam como parte do corpo. Para Paulo e Barnabé significaria dizer que, por mais distantes que fossem, permaneceriam ligados à igreja de Antioquia. Que esta igreja continuaria responsável por eles, amando-os, desejando o melhor e com certeza sustentando-os. Ao meu ver impor as mãos como sinal de autoridade e reconhecimento não é tão difícil como impô-las como sinal de cumplicidade, pois este último é um ato contínuo que demanda dedicação e profundo amor. Kent Norgan afirmou que “é mais fácil amar aquele que se vê e ter compaixão ao que está sempre ao seu lado”[15].

Por fim a igreja “... os despediu” (apelusan), do grego “apoluo”[16] que significa “fazer as honras do envio”. Creio que havia aqui um aspecto prático onde líderes e irmãos pensaram também nas necessidades imediatas de Paulo e Barnabé, para a viagem e ministério. “Apoluo” é uma expressão formal, portanto leva-nos a crer que não foram despedidos de forma simples mas antes houve um culto onde a igreja oficialmente se reunira para enviá-los: um abençoado culto de envio.

Princípios bíblicos no processo do envio missionário
Portanto temos aqui alguns princípios que podem ser observados no envio missionário.
No processo do chamado não há apoio bíblico ao ostracismo. Ou seja, é inválida a posição de irmãos que alegam ter ouvido a direção do Espírito Santo quanto à vocação missionária, mas que desejam levar adiante esta missão sem a participação da igreja local. Mesmo em um contexto para-eclesiástico[17] a igreja local precisa permanecer na linha de frente no processo de seleção e confirmação do chamado. Precisamos crer que o Espírito fala à Igreja e devemos esperar submissão daqueles que foram chamados à sua liderança local.

No desafio ao envio missionário devemos evitar o institucionalismo. É o outro lado da mesma moeda. A Igreja tomando decisões e definindo metas, estratégias e prioridades a despeito da visão daqueles que foram chamados. Precisamos crer que Deus colocará, de maneira clara, nestes corações os desejos certos e a motivação que vem do alto. É preciso ouvir, e com atenção, o que Deus fala aos chamados em sua igreja local.

Não devemos enviar para longe aqueles que não são uma bênção perto. Um critério bíblico que aqui encontramos é que irmãos sob os quais pesam nossa esperança de abençoar os que estão distantes devem primeiramente ser reconhecidamente uma bênção para nós enquanto estão perto.
No momento do envio passamos para os enviados autoridade eclesiástica, reconhecimento de que são qualificados e especialmente cumplicidade com a obra para a qual foram separados. Ou seja, no processo do envio missionário o cordão umbilical não pode ser cortado. A igreja, enviadora, é a responsável pela obra que inicia perante o Senhor. Igrejas plantam igrejas.

Ninguém sabe ao certo quando Deus falará, mas o jejum e oração – sinais de uma comunidade piedosa e crente – são a postura daqueles que ouvirão a voz do Senhor. Deus fala a muitos, contudo aqueles que se humilham ouvem mais a Sua voz.


A Missio Dei e a Missão da IgrejaTeólogos ecumênicos reunidos no Concílio Mundial de Igrejas em 1952 concordaram que tanto a Igreja quanto a Missão devem estar subordinadas à Missio Dei, à Missão de Deus. Ambas são parte e, portanto, menores que a Missio Dei. Teólogos protestantes viriam depois desenvolver esta afirmação. Bosch defende que “nossas ações missionárias são autênticas apenas quando refletem a participação na missão de Deus”[18].

Para Bavink, Glasser, Verkuyl e outros missiólogos a Missio Dei, Missão de Deus, poderia ser resumida no supremo propósito que Ele possui da vinda do Seu Reino e a glória do Seu Nome.

Missiólogos evangélicos como Glasser, Kuzmic e Van Engen concordam em geral com a conclusão de que a Igreja e o Reino de Deus não são elementos idênticos apesar de próximos. Que a Igreja é o agente primário usado por Deus para a vinda do Seu Reino sobre o mundo. Que a Igreja é composta pela multidão dos salvos, sob os desígnios de Deus. Que é Deus e não os homens que conduzem a história da salvação, em uma perspectiva histórica (Cristo, na cruz) e atual (a pregação do evangelho salvando todo aquele que crê).

Murray critica a expansão denominacional como sendo associada à expansão do Reino de Deus. Apesar da equivalência ele sugere que a expansão do Reino de Deus, o conhecimento de Cristo relatado nas Escrituras para o mundo, pode ocorrer sem expansão denominacional. Defende que o apego às placas, nomes e formas comprometem a discussão central que é doutrinária e experimental, de compreensão bíblica e novo nascimento. Defende que o crescimento denominacional pode ser usado por Deus para a expansão do seu Reino, porém demanda extremo cuidado para avaliarmos nossas motivações para tal, se o Reino ou a denominação. Esta postura denominacionalista e descomprometida com o Reino não apenas privilegia o seu grupo, mas por vezes tende a perder preciosas oportunidades de participação na expansão do Reino por limitações autoimpostas como território e reconhecimento.

Desta forma podemos concluir que, se a Missão de Deus envolve a vinda e expansão de Seu Reino, que Ele é o responsável e Único capaz para fazê-lo, a Missão da Igreja é servi-lo, participar de Sua Missão, cumprir Seus propósitos. Desta forma a Igreja é conclamada a não olhar para si mas para Ele. Não viver para satisfazer a si mas a Ele. Não procurar na própria comunidade a motivação certa para o serviço, mas nas Escrituras. A Missão da Igreja é clara: servir a Deus.


Vejo alguns grandes perigos, no Brasil, em nossa presente missiologia.


Dos resultados substituírem o caráter no perfil do obreiro. O equívoco da valorização dos frutos em detrimento do coração piedoso e crente. A carnal tendência humana de definir ação missionária a partir dos resultados e não da intimidade com Deus.


De a capacidade humana substituir a procura por dependência de Deus. O perigo de supervalorizarmos as nossas estruturas no que tange a logística, conhecimento, preparo acadêmico e capacitação em detrimento da prática de viver, trabalhar e sonhar tendo sobretudo no coração a incrível convicção de que nós dependemos de Deus.


Das estratégias certeiras substituírem o compromisso com a Palavra no crescimento da Igreja e expansão da obra missionária. Nem tudo que dá certo é necessariamente bíblico e íntegro. Por vezes somos levados a escolher entre um rápido crescimento e um caminho mais lento, porém íntegro. Que Deus nos abençoe nestes momentos e façamos a escolha da integridade.

Do zelo teológico se divorciar da prática missionária. É o outro lado da mesma moeda. De desenvolvermos um ensino teológico sem ligação com a Igreja, sua vida e dinâmica. Sem ligação com o pastor, suas necessidades e desafios. Sem ligação com a missão, a evangelização e plantio de igrejas. Uma saudável prática Sul Coreana poderia ser de grande ajuda na prevenção deste mal. De levar os teólogos a transitarem pelos desafios práticos da igreja e da missão, participando da sua vida, bem como trazer pastores e plantadores de igrejas para um cenário interativo nas salas de aula e cursos de reciclagem nos centros teológicos.

--------------------------------------------------------------------------------

[1] Michael Green é um evangelista internacional, pastor e professor de Novo Testamento. É também pesquisador senior da Wycliffe Hall, Oxford, England.

[2] The message of Matthew, 1988. Inter-Varsity Press - England
[3] Johnstone, Patrick. 1998. The church is bigger than you think. Fearn, UK. Christian Focus
[4]Hibbert, Richard – Op cit, pg 32
[5] At. 20:28; 1 Co. 1:2; 2 Co. 1:1
[6] “Ekklesia Thesalonikeon” pode ser traduzido por “Igreja dos que são de Tessalônica” indicando que se refere àqueles que formam a igreja local, e não ao local em si
[7] Este “chronous kai kairous” é uma formação textual rara que evoca, ao mesmo tempo, o tempo de Deus e o humano.
[8] “en Antiocheia” é a expressão usada demonstrando que “ekklesia” era aqui usada no sentido de igreja local. Não se refere portanto a qualquer ajuntamento de igrejas como pensam alguns mas sim à uma comunidade local
[9] Atos 4:36
[10]Barley, J.1955. Key words of the New Testament. London Press
[11]Bruman, G. 1991. Preaching and learning. United Press
[12] “Disse” (eipen) vem de “lego”: falar, se comunicar. Pode ser usado tanto para uma comunicação direta quanto via um mensageiro. Alguns exegetas afirmam que para esclarecer o fato do Espírito ter falado à igreja Lucas afirmara no primeiro verso a existência de profetas e mestres na comunidade. Outros defendem que, por deixar indefinido “através de que” o Espírito falou, provavelmente haveria falado através de uma unânime convicção de chamado nos corações da igreja e liderança em relação a Paulo e Barnabé. Algo que deixa bem claro, porém, é a postura da igreja que ouviu: estava jejuando e orando
[13]“proskeklemai” (de kaleo): chamar com um propósito. Possivelmente o propósito não fora mencionado por ser plenamente conhecido por toda a igreja. A expansão do evangelho entre os não alcançados
[14] Stott, John. 1994. A mensagem de Atos. ABU Editora. pg 243
[15]Norgan, K. 1996. Sharing the Gospel. England
[16]“Apoluo” também pode ser usado no sentido de “liberar, soltar, permitir que vá”
[17] Seria melhor o uso da expressão “pro-eclesiástica” e não “para-eclesiástica” já que se refere a organizações que, sendo também “Igreja” trabalham de mãos dadas com as comunidades locais
[18] David Bosch – Op cit – pg 370

Comentários

POSTAGEM MAIS VISITADA

APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

MISSÕES E EVANGELISMO

ANTROPOLOGIA CULTURAL