SOBRE A DOR


Bráulia Ribeiro

Enquanto o fagote avança no lúgubre primeiro movimento da Sinfonia 6 de Tchaikovsky, a melodia da dor vai se desenhando. A vida ainda se debate na valsa propositalmente desequilibrada do segundo movimento e na marcha do terceiro. Vida à procura de sentido, de equilíbrio. A vida na dor finalmente cede à morte no quarto movimento e vai se esvaindo até o silêncio.

Picasso brinca com o rosto humano e o descobre torto, desconexo. Então pinta “Guernica”, o quadro da dor da guerra, no qual homens e animais, aos pedaços, se debatem no lençol negro da incompreensão. O sol é uma lâmpada sem força. Não há outra expressão além da dor soberana, e as gentes que se entregam à morte. A dor transforma o homem; porém, ainda bela, nos comove e vai comover as gerações que virão.


Na intensa prova do Ironman em Kona, os corpos perfeitos das primeiras horas da chegada dão lugar à beleza da resistência. Os triatletas renomados chegam oito horas depois do início. Porém, não são eles os heróis. Até à meia-noite, dezessete horas depois do início da corrida, os vitoriosos são esperados. Alguns chegam mancando, mal conseguindo caminhar; outros, correndo com as forças finais que não sabiam que tinham. Coloco-me num lugar escuro do percurso, antes da virada dos últimos quatro quilômetros, e com a voz embargada grito “você vai chegar!” para o para-atleta com pernas mecânicas em cima de lâminas, ou para a velhinha claudicante. A pintura no chão diz: “compromisso são 260.3 quilômetros”. Eles finalmente passam pela chegada em estado de êxtase. O cansaço e a dor como uma droga os impulsionando para frente. Alguns desmaiam, vomitam. A voz do locutor grita: “Sandra Smith, de 58 anos, você é um Ironman!”. E ali, na intensidade da dor do máximo esforço, eles sabem que venceram.


O importante no Ironman não é chegar primeiro. É simplesmente chegar. Cada um vencendo a si mesmo. O sobrevivente do câncer, o jovem que perdeu as pernas, a mulher obesa que perdeu quarenta quilos, o pai que perdeu o filho. Todos são campeões e celebrados como tais. E todos sabem que sem dor na vida não há vitória.


Muitos creem em um Deus compatível com a dor. Seu plano superior justifica tudo e a dor como um mal menor cede lugar à glória do final, a glória inescrutável do divino que triunfará. Deus está no meio da dor. Porém, ele não se alegra nela nem a planejou. A Bíblia não nos mostra um Deus impassível, mas o inspirador da “Guernica”. Seu coração se contorce em dores, diz o profeta chorão ao descrevê-lo. Vem o Filho e encarna a descrição profética mostrando-nos o rosto, o corpo, o coração da dor na cruz. Não há dor maior do que a da rejeição suprema àquele que era o amor supremo.


Como o Deus da cruz pode ser impassível? Mel Gibson criou no filme “A paixão”, a teologia visual do sofrimento. “Em toda a angústia deles, foi ele angustiado” (Is 63.9). A dor que a humanidade se autocausou em sua rebelião, sempre foi dele também. Todo o universo sofre nosso pecado. Porque Cristo dói, a dor humana é bela como a Sinfonia 6.


Certa amiga perdeu dois de seus três filhos. Encontro com ela depois da morte do segundo, muda, sem saber o que dizer. Ela se queixa do abandono. Ninguém a visita. Além dos filhos, perdeu os amigos. A morte incomoda. Ela diz que as pessoas não sabem como se portar diante da dor que ela carrega e se afastam. Até os cristãos têm medo do contágio da dor, como uma lepra. -- “Por quê? A dor é minha, não é deles”, ela diz. -- “Não, amiga. Ela é de todos”. Mas um dia, como os Ironman, cruzaremos com dor a linha de chegada para contemplar a vitória de estar com ele.



• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical.

braulia.ribeiro@uol.com.br

http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/327/sobre-a-dor

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