A IMPORTÂNCIA E O PERIGO DA CONTEXTUALIZAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS




IntroduçãoA seguir, eles se reuniram ao pé da cruz para a primeira Ceia do Senhor, enquanto os outros olhavam. Depois de tomar o pão - uma batata-doce cozida, fria - e parti-lo em pedacinhos, John colocou-os sobre uma folha de bananeira e passou-os a todos os que foram batizados. Então ele tomou o vinho - suco de framboesa silvestre em copinhos de bambu - e distribuiu entre os treze.(1)
A Contextualização na interpretação das Escrituras é um tema atual e polêmico. Desde os anos 70 quando o termo "contextualização" começou a ser usado, (2) a palavra vem recebendo uma variedade de aplicações no meio teológico e missiológico.
Um dos motivos para a escolha deste tema, em meu presente estudo, está justamente em tentar buscar definições para o termo em relação à interpretação do texto bíblico e a aplicação dos princípios encontrados nas Escrituras.
Um segundo motivo, e não menos importante, é o de avaliar a possibilidade e a importância da contextualização na comunicação transcultural. Até que ponto se pode "contextualizar" a mensagem sem perder o seu conteúdo essencial e supra-cultural.
O terceiro aspecto é o da evangelização em si, isto é, qual a necessidade e obrigatoriedade do evangelista em transmitir uma mensagem de acordo com o conhecimento de seus ouvintes, mesmo sendo da mesma cultura que o pregador.
A tradução da Bíblia para os nossos dias, é também uma razão suficiente para um estudo assim. É possível traduzir e interpretar a Bíblia, de forma compreensível ao leitor, sem contextualizar?
Intimamente ligado aos motivos acima, que têm muito a ver um com o outro, está a preocupação de uma teologia autóctone. E possível existir uma teologia autêntica e válida para cada contexto cultural?
Certamente, minha abordagem terá o colorido transcultural já que esta é a minha principal preocupação ministerial. Não resta dúvida, no entanto, que a questão hermenêutica é crucial e fundamental para as missões. Trata-se do conteúdo da mensagem, sua fidelidade ao Evangelho de Cristo e do lançamento da base doutrinária de novas igrejas, às vezes, de povos e culturas inteiras que pela primeira vez recebem o impacto da Verdade. Não seria exagero dizer que, dependendo de nossa capacidade de interpretar e comunicar o Evangelho, será formada uma igreja realmente evangélica (do evangelho) e coerente com a vontade expressa do idealizador, o mestre Jesus Cristo. Não estamos, em absoluto, negando a obra do Espírito Santo de Deus, que vem ao encontro de nossas fraquezas e imperfeições e que zela pela Igreja e a orienta. Porém, devemos sentir a responsabilidade na interpretação e na comunicação do Evangelho, como se tudo dependesse disto.
Na questão específica da contextualização na interpretação das Escrituras, creio que tem havido uma adaptação inconsciente e impensada a certos contextos regionais e culturais. Na defesa da tradição e de possíveis mudanças, é importante se fazer uma diferença entre aquilo que é essencial ao Evangelho, como a salvação em Cristo, e aquilo que é secundário, como a posição dos bancos no templo. Quando aspectos fundamentais estão em jogo e a tradição se mantém de um lado claramente anti-bíblico, isto precisa ser denunciado e corrigido.
Portanto, a abordagem deste artigo será a partir de uma abertura para a contextualização, respeitando-se tanto a época como o contexto cultural. Não significa algo sem critérios - estes iremos buscar ao longo deste texto.
Em partes, o artigo pode ser bastante técnico, principalmente na análise das palavras chaves dos textos escolhidos. Creio, no entanto, que poderá ser útil na compreensão das conclusões que foram tiradas.

Definições de ContextualizaçãoAntes de entrarmos no estudo propriamente dito de textos sobre a contextualização na interpretação das Escrituras, vamos alistar algumas definições de Contextualização.
A definição inicial da palavra, quando primeiramente cunhada no início dos anos 70, era a de que contextualização se referia a "capacidade de responder de modo relevante ao evangelho dentro do arcabouço da situação da própria pessoa".(3)
O próprio Bruce Nicholls define como "a interpretação (translação) do conteúdo imutável do evangelho do reino em forma verbal compreensível aos povos em suas diversas culturas e em suas situações existenciais peculiares".(4)
Harvie Conn diz que contextualização é "o processo de conscientização de todo o povo de Deus das reivindicações hermenêuticas do evangelho".(5)
George Peters diz: "Contextualização aplicado adequadamente significa descobrir as implicações legítimas do evangelho em cada situação. Vai mais fundo que aplicação”. (6)
Hesselgrave dá uma definição mais completa:
...contextualização pode ser vista como uma tentativa de comunicar a mensagem sobre a pessoa, a obra, a palavra e a vontade de Deus, numa forma que é fiel à revelação divina, especialmente como é apresentada nos ensinamentos das Sagradas Escrituras, e que é relevante aos receptores em sua respectiva cultura e contexto existencial. Contextualização é tanto verbal como não verbal e tem a ver com a teologização; tradução, interpretação e aplicação da Bíblia; estilo de vida de encarnação; evangelização; instrução cristã; plantação e crescimento de igrejas; organização eclesiástica; estilo de adoração - de fato, com estas atividades que envolvem o cumprimento da Grande Comissão. (7)
Bárbara Burns resume a contextualização como "a expressão do verdadeiro Evangelho em termos relevantes à cultura receptora". E cita Kraft dizendo que é uma,
“...adaptação de idéias, conceitos, ações, interesses, preocupações e costumes de uma cultura para outra. É apresentar a mensagem ou desenvolver um programa de tal forma que as pessoas da cultura receptora encaram como atingindo suas necessidades e preocupações". É um processo dinâmico de 2 forças: uma cultura em mudança e uma mensagem ou programa de fora da cultura.(8)
Como vemos nas definições acima, contextualização tem muito a ver com a comunicação transcultural, o que é natural por se tratar de interpretar para uma linguagem diferente da original, a mensagem bíblica. Sem dúvida, ocorre já na própria escrita do texto sagrado, uma contextualização das verdades eternas e espirituais para uma linguagem compreensível ao ser humano. Para isto, Deus escolhe uma cultura e uma época específica, dentro das quais comunica a sua intenção salvífica para com a humanidade como um todo.
Queremos, agora, passar para o estudo de alguns textos que são freqüentemente mencionados em relação à interpretação contextualizada das Escrituras.

Textos Bíblicos Relacionados com a Interpretação BíblicaExistem muitos textos bíblicos que poderiam ser estudados neste assunto. Não existe, no entanto, nenhum texto, que eu conheça ou tenha visto na literatura sobre o tema, que trate diretamente do problema da contextualização utilizando este termo ou algo parecido. A contextualização, como princípio na interpretação bíblica, parte de exemplos concretos na divulgação do Evangelho pelos apóstolos e de conclusões, até lógicas, de textos sobre a aplicação da Palavra de Deus.
Vamos, para o nosso estudo mais exegético, escolher 3 textos, analisando-os parcialmente: Atos 14.8-18; 1Co 9.19-23; e 2Tm 3.16.(9)
O primeiro é um exemplo das situações concretas vividas pelo apóstolo Paulo na comunicação do evangelho entre gentios. O segundo é uma declaração do apóstolo sobre o seu ministério, em termos de levar em conta o contexto onde está. E, o terceiro é uma afirmação genérica de Paulo sobre o uso das Escrituras.

1. Atos 14:8-18 - Paulo e Barnabé em ListraContexto geral: Barnabé e Paulo estão em sua primeira viagem missionária, narrada pelo médico amado, Lucas, nos capítulos 13 e 14 de Atos dos Apóstolos. Saindo de Antioquia da Síria, o caminho tomado foi para o ocidente, passando por Chipre, Perge, Antioquia da Psídia, e dali rumo ao oriente para Icônio, Listra e Derbe, voltando depois basicamente pelo mesmo caminho.
A Igreja vive um forte momento de expansão após os anos de "curtição da comunhão fraternal" em Jerusalém. Os contatos com os gentios ainda eram poucos em termos de evangelização direta e a equipe de Barnabé e Paulo é pioneira neste tipo de avanço. Alguns gentios já tinham sido alcançados, ou porque foram ganhos através de judeus presentes em Jerusalém no dia de Pentecostes (que possivelmente gerou igrejas no mundo romano, como a de Roma).(10) Green descreve assim o momento histórico narrado em Atos:
Na primeira parte de Atos Lucas mostra os estágios de desenvolvimento desta expansão. Primeiro o evangelho foi pregado em Jerusalém (1.1-6.7), depois ele espalhou pela Palestina e por Samaria (6.8-9.31), a seguir alcançou Antioquia (9.32-12.24). A segunda parte forma um belo equilíbrio com a primeira, relatando a difusão do evangelho através da Ásia Menor (12.25-16.5) e da Europa (16.6-19.20), até chegar em Roma (19.21-28.31).(11)
Mesmo com a pregação aos samaritanos e aos prosélitos religiosos (ou "tementes a Deus") como o eunuco etíope e Cornélio, é a partir da chegada forçada em Antioquia que os seguidores de Cristo, logo chamados de cristãos, começam a evangelizar os gentios.
Portanto, o texto em questão é tremendamente interessante por colocar, pela primeira vez, de forma declarada e registrada, os apóstolos diante da questão de contextualizar a mensagem.
Contexto próximo: A visita em Listra começa com a cura de um homem aleijado, paralítico desde o seu nascimento, que jamais pudera andar (v.8). O milagre alvoroçou a cidade e os apóstolos foram identificados com deuses pagãos, dando oportunidade ao testemunho. A pregação na cidade quase termina em tragédia, sendo Paulo apedrejado pelas multidões instigadas por judeus (!) que vieram das cidades vizinhas para atrapalhar o avanço da "seita nazarena". Segundo os vv. 21 e 22 e 16.1 e 2, fica claro, entretanto, que surgiu uma igreja na cidade.
A cidade de Listra ficava numa região agrícola e atrasada. Seus habitantes falavam a língua licaônica e não o latim ou o grego, utilizados pelos mais cultos no Império Romano. Dominava a idolatria tendo entre seus deuses principais a Zeus e a Hermes (ou Júpiter e Mercúrio, equivalente romano). Uma lenda local dizia que estes deuses já haviam, em ocasiões anteriores visitado a terra em forma humana. Segundo o panteão grego, Zeus (Júpiter) era o deus chefe, enquanto que Hermes (Mercúrio) era o porta-voz dos deuses.(12)
É, portanto, neste ambiente de zona rural e de idolatria que os pioneiros se encontram para, de forma clara e correta, explanar o Evangelho de Cristo. Um detalhe interessante é que Timóteo era desta cidade (At 16.1,2).

Palavras e expressões chaves:Versículo 8 - a tríplice afirmação da paralisia do homem em Listra, marca claramente que não se tratava de um milagre apenas psicológico:
• "aleijado" - adunatos tois posin - fraco nos pés, sem forças para andar
• "paralítico" - cholos - manco, que tem um só pé, paralítico (Hb 12.13)
• "jamais pudera andar" - oudepote periepatēsen
O médico Lucas realmente enfatiza a situação clínica do homem, certamente para dar um claro contraste ao ocorrido e à reação do povo no v. 11.
Versículo 9 - Paulo se interessa pelo homem e, ao estilo de Jesus, olha-o atentamente, se compadece e vê sua fé para ser curado.
• para ser curado - sōthēnai - para ser salvo (de sōzō) -salvar, ajudar, guardar, curar.
Sem forçar o sentido da palavra ou a situação específica, parece que há uma preocupação por parte de Paulo que vai além da cura física. Isto indicaria já um aspecto interessante da contextualização do evangelho - a mensagem vem de encontro às necessidades do homem paralítico em Listra, curando-o em primeiro lugar de sua enfermidade e sendo-lhe anunciada, juntamente com os demais na cidade, também a libertação da idolatria e da "paralisia" espiritual.
Versículo 10 - O próprio homem dá testemunho de sua cura. Trata-se de um evangelho que age, que transforma situações. Não é a primeira vez que Marcos 16.17,18 se cumpre no ministério dos apóstolos e parece que de forma muito natural faz parte do avanço do Reino mesmo no meio dos povos gentios.
Versículo 11 - A reação do povo não se deixa demorar. O milagre alvoroçou a cidade. Bruce destaca a questão do idioma:
O fato das multidões terem gritado em língua licaônica sendo destacado por Lucas (que deve ter recebido esta informação de Paulo) se deve provavelmente a duas razões: em primeiro lugar, Paulo e Barnabé reconheceram que era um idioma diferente da dos frígios que tinham ouvido dos lábios da população nativa em Antioquia da Psídia e Icônio; em segundo lugar. o uso da língua licaônica explica porque Paulo e Barnabé não entenderam o que estava passando até que estavam já avançados os preparativos para pagar-lhes honras de divindades.(13)
A interpretação do povo foi de acordo com seu conhecimento, certamente usando seu referencial de lendas já mencionado acima. Só poderiam ser deuses (no caso Zeus e Hermes) que estavam daquela forma milagrosa aparecendo.
Versículos 12-13 - A explicação que Lucas dá da reação positiva do povo aos visitantes e os preparativos para a adoração a eles. Mostra a religiosidade do povo, seu anseio e sua veneração, frutos de uma idolatria impregnada na sociedade gentia da cidade.
Versículo 14 - A reação, um tanto atrasada, dos apóstolos é tipicamente judaica: rasgam suas vestes em sinal de horror e protesto (cp. Mc 14.63), mas que certamente, foi compreensível para os habitantes da cidade.
Versículo 15 - A pregação propriamente dita, inicia aqui com alguns termos chaves:
• "anunciamos o evangelho" - euavggelizomenoi -evangelizar
• "cousas vãs" - mataio - de matē - vão, ineficiente, inútil, infrutífero, fútil, sem base, louco, tolo (Cp 1Co 3.20; 1Co 15.17; Tt 3.9).
• "vos convertais" - epistrephein - mudar de direção, dar meia volta, significando mudar de caminho de vida, uma transformação completa. Diz Laubach:
Atos freqüentemente descreve os resultados da proclamação missionária pelos primeiros cristãos. Sempre fala da conversão como um evento "uma-vez-por-todas" e com conteúdo próprio (At 9.35; 11.21). De At 15.3 fica claro que a palavra "conversão" logo se tornou um termo técnico que não necessitava mais explicação; é usado para a conversão de um homem que envolve uma completa transformação de sua existência sob a influência do Espírito Santo.(14)
Paulo deixa claro para que eles tinham vindo. Sabendo do confronto que sua mensagem poderia causar mas também reconhecendo a urgente necessidade que o povo tinha de mudar sua vida, ele expõe, da forma mais inteligível que pode, as boas novas de salvação. A conversão, a mudança de rumo, deveria ocorrer da idolatria, que em nada tinha valor, para o verdadeiro e único Deus. Sem dúvida, uma mensagem forte e nova para os de Listra. Existe uma lógica na exposição de Paulo, tentando criar uma ponte com os ouvintes para que eles se sentissem participantes da mensagem e da oferta salvadora.
Ele começa com o Criador comum de todos, incluindo os de Listra, que deixou os povos andarem nos seus próprios caminhos, mas que manteve um controle e uma presença no meio dos povos abençoando-os através da natureza. Não se deveria, portanto, adorar a criação ou a criatura, mas o Criador que está por trás de tudo.
Eerdman comenta:
Em Listra Paulo dá um exemplo admirável da adaptação necessária da mensagem missionária ao auditório, não alterando sua essência, mas o enfoque. Paulo se dirige a excitada multidão de pagãos. Não começa recorrendo à Escritura, que seus ouvintes desconhecem por completo, mas fala-lhes de Deus cujo poder e amor se manifesta nas obras da natureza e de sua providência. Diante da bondade de um Deus vivo e verdadeiro como esse, Paulo convida a seus ouvintes a se arrependerem, e prepara o caminho para a mensagem acerca de Cristo, o Salvador.(15)
Versículo 16 - Até no aspecto de "permitir que os povos andassem nos seus próprios caminhos", Deus é o agente, o que controla. Existe aqui uma valorização, por parte de Deus, das diferentes culturas, resultantes do processo de "enchimento da terra" proposto e exigido pelo próprio Criador. A natural diferenciação em culturas e em línguas ocorreria mesmo sem a confusão de Babel, já que cada povo teria seu ambiente a que se adaptar e a distância entre os povos causaria também um distanciamento lingüístico.
Versículo 17 - sem testemunho - amartupon - sem testemunho, no sentido de preservar algo de si na cultura e na vida do povo, que dá suficiente razão para condenar mas que também cria um elo para a propagação do evangelho (Cp Rm 1.18-20).
Resumindo o breve estudo desta passagem, podemos dizer que o apóstolo mostra uma contextualização da interpretação das Escrituras nos seguintes aspectos:
1. A cura do homem paralítico, demonstrando um evangelho integral de poder e de esperança, dando resposta à necessidade mais patente do ser humano.
2. O claro rechaço às homenagens e à adoração como deuses, que se aceita teria criado grande dificuldade mais tarde para a pregação sobre Cristo e causaria um sincretismo indesejável.
3. A mensagem não ficou só no milagre, mas mostrou a situação pecaminosa dos habitantes de Listra, o problema da idolatria e o caminho de volta a Deus.
4. Utilizando o argumento da natureza e identificando o Criador comum a todos, e não usando o Antigo Testamento, Paulo é sensível ao conhecimento do povo e consegue comunicar de forma compreensível.

2. 1Co 9.19-23 - O ministério de Paulo
Contexto geral: A primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios foi escrita logo após sua visita a cidade de Corinto, estando ainda em Éfeso, por volta do ano 54. A "carta prévia" (5.9) não tinha gerado os frutos desejados e Paulo volta a escrever sobre os problemas na igreja. Ele trata de questões como a necessária unidade na igreja, maturidade e moralidade cristã, a disciplina na igreja, o problema do litígio entre irmãos, a sensualidade e o casamento, o "pode e não pode" na vida do cristão, a ordem na liturgia, os dons espirituais, a ressurreição e, naturalmente, o famoso capítulo do amor que é a base de toda a comunhão no Corpo de Cristo.
A fase do ministério de Paulo é de muita atividade, expansão e implantação de igrejas, mas também de fortes críticas contra o seu apostolado. 9.3 deixa claro que existe a necessidade de defesa (gr. aupologia), e que, mesmo contrariado, ele precisa argumentar a favor de sua atuação junto às igrejas. Esta defesa fica ainda mais forte e clara na sua segunda carta, principalmente nos capítulos 10 a l2.
Contexto próximo: Nosso texto segue o capítulo 8 onde Paulo tem falado dos limites da liberdade cristã em relação aos fracos, tema que continua no capítulo 10. Para dar um exemplo prático e pessoal do que isto significa, ele descreve a sua própria visão de ministério e de vida cristã. Ele também tem direitos, sendo livre e podendo reivindicar alguma comodidade, da forma como outros faziam. Mas, para não causar tropeço e escândalo, ele abriu mão de seus direitos legítimos: "Entretanto não usamos desse direito; antes suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo" (v. l2b). Sua preocupação está em mostrar, não o seu sacrifício pessoal com auto-condoimento, mas um exemplo digno de imitação de alguém que coloca os interesses do Reino de Deus em primeiro lugar. A prioridade era que o evangelho tivesse êxito.
Nosso texto é tremendamente rico e não temos condições de esgotá-lo neste estudo. Queremos destacar alguns aspectos que tem a ver com a contextualização. Trata-se, principalmente, da visão de Paulo quanto ao seu ministério e até que ponto ele está disposto de se adaptar para levar a mensagem a outras pessoas.

Palavras e expressões chaves:Versículo 19
• "livre" - eleutheros - livre, no sentido de não escravo, livre para agir, livre da lei. Paulo já começa o capítulo com esta expressão, marcando, que no fundo não tem obrigação de se amarrar a pessoas nem a regras humanas.
• "fiz-me escravo" - edoulōsa - doulōsō - fazer-se escravo. O verbo está no indicativo aoristo ativo na 1a pessoa do singular - indicando uma ação voluntária de Paulo, uma vez por todas e com conseqüências para o seu ministério. Odeberg comenta:
Provavelmente chegamos mais perto do sentido de Paulo se dissermos: exatamente porque sou livre, tenho me feito servo de todos. Isto não é para Paulo uma forma piedosa de dizer as coisas, mas algo que foi cumprido na prática em todo o seu ministério.
• A palavra doulos que compõem este verbo é um termo chave na apresentação do apóstolo de si mesmo (Rm 1.1; 1Ts 1.1, etc). Fala de sua relação diante de Cristo Jesus mas também diante da Igreja de Cristo.
• "ganhar" - kerdēsō - ganhar, ter lucro, ganhar alguém para o seu lado. A idéia de Paulo não é de um lucro pessoal mas uma vitória para o evangelho. Enquanto outros pensavam em sua posição e quanto poderiam "ganhar" com isto, ele abria mão de seus direitos para que o evangelho saísse lucrando.
• Versículo 20 - "procedi" - egenomēn - de gívomai - proceder, fazer, nascer, estar, vir, etc. Um verbo comum com muitos significados dependendo do contexto. Aqui também está no aoristo indicando que o procedimento de Paulo não era teórico apenas mas tinha de fato ocorrido em seu ministério.
A continuidade do verso traz um paralelismo entre judeus e "debaixo da lei", onde Paulo diz ter-se identificado com estes para ganha-los (mesma palavra que acima). A mesma forma de se expressar encontramos no v. 21, agora em relação aos gentios, ou os "sem lei". Como Paulo poderia se tornar um judeu já sendo um? (Cp 2Co 11.22; Fp 3.5).


Barrett responde:
Ele podia se tornar um judeu somente se, tendo sido anteriormente um judeu, tinha deixado de sê-lo e agora era outra coisa. Seu Judaísmo já não pertencia mais a sua pessoa, mas uma aparência que ele podia adotar ou deixar conforme seu desejo. Não significava um desrespeito à lei ... mas se baseava na convicção de que o judaísmo tinha sido cumprido em Jesus Cristo e a lei levada ao seu alvo previsto (Rm 10.4).
Concordando ou não em todos os aspectos com Barrett, é interessante notar este desprendimento do apóstolo em relação a sua cultura materna. Sem dúvida a infância em Tarso, numa atmosfera bicultural tinha tido sua influência. Mas, certamente, também sua compreensão que, em Cristo, as barreiras caiem e a lei tem o seu cumprimento final.
Algumas pequenas palavras têm importância nestes versículos:
A- para com - os judeus
B- como - judeu
C- a fim de- ganhar os judeus
A- para - os que vivem sob o regime da lei
B- como - se eu mesmo assim vivesse
C- para - ganhar os que vivem debaixo da lei

A- para os sem lei
B- como - se eu mesmo o fosse
C- para - ganhar os que vivem fora do regime da lei

A- para com - os fracos
B- como (subentendido) - fraco
C- para - ganhar os fracos

A- para com - todos
B- como (subentendido) - eles
C- com o fim de - ganhar alguns

Este esquema, de A + B = C, que se repete nos versos 20 a 22 mostra um paralelismo e um jogo de palavras (utilizando no grego coerentemente as palavras hōs (como) e hina (para, a fim de) que enfatiza a conclusão do v. 23.)
Versículo 23 - A conclusão é a mais clara possível, sendo tanto uma confissão como um desafio aos seus oponentes: "Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele".
• cooperador - sugkoinōnos - ter parte em, participante, cooperador. Expressão utilizada mais três vezes no N.T. nesta forma, e algumas vezes na forma verbal.
• Rm 11.17 - participante da raiz e da seiva - falando sobre o "enxerto" dos gentios em Israel;
• Fp 1.7 - sois participantes da graça comigo - Paulo falando aos filipenses sobre a nova vida que eles têm em Cristo; e
• Ap 1.9 - irmão vosso e companheiro na tribulação - João falando de si mesmo.
Outras palavras da mesma raiz são mais comuns no N.T., como koinoneō, koinōnos e koivōnia.
Barrett diz sobre a utilização da palavra "cooperador":
Paulo não quer dizer "um participante com o evangelho" (na obra de salvação); nem "um que faz sua parte (pregando) o evangelho". Suas palavras significam participação nos benefícios do evangelho. É no cumprimento de sua vocação como evangelista que ele se apropria do evangelho a si mesmo.(16)

E Morris concorda:
Toda a conduta era determinada pelo Evangelho. Era isso que importava, não o pregador. Todavia, ele não está desatento à sua própria necessidade, e introduz pequenina referência a ela. Espera tornar-se "um participante", isto é, partilhar com outros as bênçãos da salvação. Mesmo aqui ele pensa nos outros, pois a sua palavra salienta a idéia de co-participação.
A questão é: até que ponto Paulo está falando sobre contextualização da interpretação das Escrituras e adaptação do evangelho às diferentes culturas, judaica e gentia?
Creio que podemos resumir a resposta em alguns pontos:
1. Paulo, como cristão e mensageiro do evangelho, está sempre disposto a se adaptar ao meio onde irá comunicar a mensagem. Sua pessoa é secundária, enquanto que o evangelho é prioritário.
2. O evangelho é um só, independente do contexto, sendo o caminho da salvação o mesmo para todos, isto é, através de Jesus Cristo (Cp 1Tm 2.5; Rm 1.16)
3. A forma como o evangelho é apresentado pode variar dependendo da cultura a ser alcançada. Isto é visto nos exemplos da vida do apóstolo, e na expressão enfática: "por todos os modos, salvar alguns" (v. 22). Em outros termos, ele se faz servo, se coloca debaixo de uma cultura, mesmo não sendo a sua inicialmente, nem a sua "preferência", no momento.
4. A contextualização se dá, portanto, na pessoa do missionário e na forma como apresenta a mensagem, mas não no seu conteúdo. Paulo sabe, que somente fiel a vocação e ao conteúdo do evangelho, obterá os benefícios prometidos.
5. Não podemos ir longe demais nas conclusões destes versículos, que deixam um desafio para nós de colocarmos o Reino de Deus em primeiro lugar, acima de nossa posição e bem-estar pessoal, porém não dá suficiente margem para um relativismo na adaptação do evangelho à uma cultura, contextualizando-se até ao extremo a Palavra de Deus.
O relatório de Willowbank resume bem a questão aqui, incluindo este texto:
Às vezes esses dois erros (falta de sensibilidade a cultura e apresentação de um evangelho por meio de formas culturais alienígenas) de ordem cultural são cometidos ao mesmo tempo, e mensageiros do evangelho são culpados de um imperialismo cultural, que tanto mina a cultura local desnecessariamente como procura impor uma cultura alienígena em seu lugar. Contrastando com isso, o apóstolo Paulo continua sendo o exemplo supremo da pessoa a quem Jesus Cristo primeiro despiu do orgulho de seus próprios privilégios culturais (Fp 3.4-9), e depois ensinou-o a adaptar-se às culturas alheias, fazendo de si mesmo escravo em meio a elas e se tornando "tudo para com todos", a fim de, por todas as formas possíveis, salvar alguns (1Co 9.19-23).

3. 2Tm3.16- A Utilidade das Escrituras
Contexto geral: O texto de Paulo a Timóteo faz parte das "cartas pastorais", escritas mais para o fim do ministério Paulino. Certamente a segunda carta a Timóteo, pastor em Éfeso, é a última que Paulo escreve, nos dando a idéia até de um testamento final deixado para o seu filho na fé. Paulo está preso em Roma, porém o evangelho é livre e continua avançando dentro do Império Romano, e fora dele, mesmo não tendo registros específicos sobre isto. Timóteo é visto, por Paulo, como um dos líderes na nova geração que está prestes a substituir a dos apóstolos. Trata-se da segunda geração de pregadores e missionários que tem a tarefa de levar as boas novas além das fronteiras romanas. Sabemos que no fim do primeiro século grande parte do mundo conhecido na época, de alguma forma, a presença do testemunho cristão, e segundo a tradição indiana, até lá a Igreja tinha sido implantada.
Contexto próximo: Na epístola do apóstolo para seu afiliado espiritual, uma das preocupações é a fidelidade do jovem obreiro à doutrina ensinada por sua mãe e avó e pelo próprio Paulo. "Permanece naquilo que aprendeste" (3.14) é um tema que volta. O outro cuidado que o discipulador tem com seu discípulo é o do bom procedimento em sua vida pessoal e em seu ministério. Exortações e conselhos enchem esta carta, dados com base em longos anos de experiência pastoral e missionária. "Tu porém" é uma expressão que mostra o que o apóstolo espera de Timóteo (3.10, 14; 4.5): uma mentalidade diferente da mundana e corrupta, um viver irrepreensível e exemplar, uma fidelidade à verdade do evangelho e uma sobriedade distinta da de tantos outros "doutrinadores".
Nosso texto segue a conselhos definidos sobre a continuidade aos ensinos recebidos de pessoas idôneas e fidedignas. É o padrão estabelecido pelo próprio apóstolo para o verdadeiro discipulado (2.2). A questão agora é como utilizar as Escrituras e até que ponto podem ser adaptadas às divergentes necessidades apresentadas pelas pessoas.
A finalidade está clara. Todo o ensino e toda a aplicação das Escrituras deve levar à perfeição e habilitação para a boa obra (v. 17). Analisemos o texto:

Palavras e expressões chaves:
• "Escritura" - graphē - escrito, livro, Escritura. Diz Kelly:
Não precisa haver hesitação acerca do substantivo, pelo menos no que diz respeito à sua referência geral. Embora literalmente signifique "escrito" ou "livro" e possa concebivelmente abranger escritos ou livros em geral, tanto o contexto quanto o uso no N.T. requerem que tenha o sentido mais restrito de Escritura, isto é, AT.
Mais adiante Kelly discute sobre a expressão "toda Escritura" que deixa margem para outras interpretações, mas ele chega a conclusão que o mais provável aqui é que, de fato, Paulo se refere a todo o Antigo Testamento, as sagradas letras, ensinadas a Timóteo.(17)
Stott tem uma interpretação alternativa:
Não me parece de todo impossível que com esta expressão ele está incluindo as duas fontes do conhecimento de Timóteo há pouco mencionadas, quais sejam. "aquilo que aprendeste (de mim) e as sagradas letras".
• "inspirada por Deus" - theopneustos - soprada por Deus. Um termo que somente aparece aqui em todo o N.T., porém usado em outra literatura grega. Fala da presença por trás e em sua palavra. Não vamos entrar na discussão pormenorizada das possíveis alternativas de tradução que surgem aqui. Optamos por: Toda a Escritura é divinamente inspirada e...
• "útil" - ōphelimos - útil, de proveito. (Cp Tt 3.8 e 1Tm 4.8). A utilidade de toda Escritura vem especificada nos exemplos que seguem:
• "para o ensino" - didaskalian. O ensino é a fonte positiva de doutrina cristã.
• "para a repreensão" - elegmon - refutação do erro e repreensão do pecado.
• "para a correção" - epanorthēōsin - melhora, restabelecimento, correção. Convencer os mal-orientados dos seus erros e colocá-los no caminho certo outra vez.
• "para a educação" - paideian - disciplina, educação. Aqui educação na justiça, na retidão, isto é, educação construtiva na vida cristã.(18)
O que o versículo tem a ver com a contextualização da interpretação das Escrituras?
Independente se Paulo se refere ao Antigo Testamento somente ou inclui o seu próprio ensino, que em parte, mais tarde, será incluído no Novo Testamento (questão em si importante), fica nítida sua confiança na palavra inspirada por Deus. É ela que é a base para todo o ensino, repreensão, correção e educação em justiça. Esta valorização das Escrituras é sumamente importante na questão da contextualização. Se abrirmos mão da autoridade bíblica com princípios supra-culturais, válidos tanto em Éfeso como em Roma, ou em qualquer outro lugar, caímos num relativismo perigoso e desorientador. Voltaremos a este perigo na conclusão do trabalho.
Outro aspecto importante neste texto é a utilização da palavra em si no trabalho ministerial. Não são apenas as idéias registradas na Bíblia que são relevantes mas a escolha das palavras, a ordem em que se encontram, etc. Não que tenham, em si, um poder mágico ou que devam ser usadas como fórmulas, mas pela riqueza e profundidade que contém, incapazes de serem entendidas por um único intérprete e leitor. Uma fraca comparação poderia ilustrar a questão. Durante muitos anos a Igreja Católica Romana não permitiu aos fiéis comuns o acesso às Escrituras - a única interpretação possível era a dada pelos padres, com direções claras vindas do Vaticano. A leitura bíblica era vista como perigosa -poderia trazer novas interpretações, o que também ocorreu na reforma. A contextualização precisa levar em conta a necessidade e a possibilidade dos povos que estão sendo alcançados com o evangelho de poderem ter acesso direto às Escrituras e não a paráfrases baratas. E verdade que, num primeiro momento pode ser difícil (e até impossível) utilizar uma linguagem bíblica na pregação. A linguagem precisa estar de acordo com o auditório. A preocupação está mais em termos de não privar pessoas da riqueza que o texto tem dentro do seu contexto histórico e cultural, que, de qualquer forma, irá transparecer na proclamação da pessoa de Cristo, mais cedo ou mais tarde.
Nelly relata um destes momentos concretos quando a palavra tinha que ser traduzida corretamente pelo missionário Dekker:
Tinha também que "traduzir" os símbolos para coisas que os danis conhecessem e compreendessem. "Como explicar o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo quando os danis jamais viram ou ouviram falar de ovelhas? Tenho de explicar primeiro as características das ovelhas, e, então contar por que Jesus foi chamado de Cordeiro de Deus". Somente depois é que ele poderia falar em sacrificar um "leitãozinho", algo que os danis conheciam.
O exemplo mostra a possibilidade de partir do conhecido para o desconhecido e ao mesmo tempo introduzir uma nova idéia sem ferir a cultura de um povo.
Beekman e Callow dão outros exemplos de como se precisa ter o cuidado de manter o significado original ao se fazer traduções, levando em conta o que está explícito e implícito num texto e até que ponto um novo leitor pode entender o texto bíblico. (19)
Resumindo o texto estudado, podemos afirmar que:
1. A Bíblia é a autoridade fundamental para o cristão e para a proclamação do evangelho. Nela toda a doutrina precisa se espelhar e encontrar respaldo.
2. Em todas as situações da vida, em qualquer época e em qualquer cultura, a Palavra de Deus é útil e suficiente para conduzir a pessoa no caminho do Senhor.
3. Qualquer contextualização de interpretação precisa respeitar a inspiração divina das Escrituras.
4. Saber qual a fonte da interpretação tem grande valor para discernirmos sua fidelidade à Palavra e a intenção por trás (Cp 3.14).

A Importância e o Perigo da Contextualização
Vamos de forma resumida colocar alguns aspectos referentes a importância e aos perigos da contextualização de interpretação das Escrituras, tentando assim concluir nosso trabalho.

1. A Importância da Contextualização
1.1. Uma mensagem compreensível - a contextualização é importante, primeiramente, para dar aos ouvintes da Palavra, a chance de entender a mensagem. Evangelizar não é somente recitar versículos bíblicos de cor, mas também de explicar o conteúdo do evangelho de forma compreensível.
1.2. Uma mensagem relevante - o povo que recebe o evangelho precisa sentir que a mensagem tem algo de atual e útil para o momento que vive. Sturz lembra que um dos aspectos interessantes e aplicáveis da Teologia da Libertação, é a procura de relevância na mensagem.(20)
1.3. Uma adaptação cultural do mensageiro - o missionário precisa se contextualizar o máximo possível, tendo a mentalidade serviçal de Paulo. Isto trará credibilidade ao evangelho e dará o devido valor à cultura nativa receptora da mensagem.
1.4. Uma liturgia contextualizada - a forma de expressar a fé e de realizar o culto a Deus precisa ser contextualizada, dando possibilidade as pessoas se identificarem com a adoração e as expressões litúrgicas. Existe em cada cultura elementos aproveitáveis na adoração ao Criador.
1.5. Uma teologia contextualizada - não no sentido de se afastar das doutrinas básicas bíblicas, mas na aplicação destas verdades para o seu contexto. Grande parte da interpretação que seguimos hoje na América Latina, por exemplo, vem de contextos completamente alheios ao nosso, com uma forte coloração de sua época e de seu ambiente.
Existem, sem dúvida, doutrinas supra-culturais que precisam ser detectadas e preservadas. Porém, também há elementos culturais tanto no texto bíblico como na interpretação da Igreja durante a história, que precisam ser discernidos e contextualizados com sabedoria.
1.6. Uma eclesiologia contextualizada - dando a cada povo e cada cultura a oportunidade de formar o seu modelo de liderança, de governo e de disciplina.
David Bosch cita, entre outros, duas vantagens com a contextualização:
Missão como contextualização é uma afirmação de que Deus tem se movido em direção ao mundo. Missão como contextualização envolve a construção de uma variedade de "teologias locais".
Em suma, pode-se dizer que o importante na contextualização é que cada povo, em cada geração, em cada cultura, sinta que o evangelho lhes pertence. Que não se trata de algo judaico, ou ocidental, americano ou europeu. Nem algo do homem branco ou apenas do primeiro século. O positivo com a contextualização é justamente esta atualidade e relevância do evangelho.

2. Perigos com a contextualização
Como quase sempre existem "good news and bad news". Ao mesmo tempo que muitos aspectos são positivos com a contextualização, existem perigos. Citemos alguns:
2.1. O sincretismo cultural - é um dos perigos mais citados pelos autores que tratam do assunto. Diz Nicholls:No debate contemporâneo sobre o evangelho e a cultura há dois tipo perigos sincretistas - sendo que um é cultural e o outro é teológico. Os antropólogos são mais sensíveis ao primeiro, e os teólogos ao segundo.
Sincretismo cultural adota duas formas, segundo o mesmo autor. A primeira é a entusiástica tentativa de utilizar acriticamente os símbolos e as práticas religiosas da cultura receptora para expressar a fé cristã, criando uma fusão de crenças. A segunda, é a de forçar formas culturais sobre os receptores querendo mudar sua cultura. Leva também a uma confusão e uma mistura, onde no templo no domingo, as práticas "de fora" são seguidas enquanto que no dia a dia continua a prática nativa.
Ao perguntar a um guia turístico em visita a Macchu-Picchu no Peru sobre a questão religiosa do povo quechua, ela disse: "somos católicos no domingo porque nos obrigaram a isto, mas durante a semana continuamos com nossa crença inca".

2.2. Que sincretismo teológico e doutrinário -citando Nicholls, novamente:
O sincretismo teológico vai para o próprio âmago da cultura, por que é a ligação de conceitos e imagens nas profundidades da cosmovisão e da cosmologia, e dos valores morais e éticos. E mais destrutivo do que o sincretismo cultural...
O sincretismo teológico e doutrinário leva a uma perda dos princípios básicos da fé cristã e precisa ser evitado a todo o custo. Uma contextualização que chega a este ponto trai ao Mestre da obra e à sua palavra.
2.3. O relativismo das Escrituras - a grande crítica que se pode fazer a etnoteologia de Charles Kraft é seu relativismo na interpretação e aplicação das Escrituras colocando a cultura receptora como normativa para a teologia. (21)
Uma discussão mais ampla e comparativa sobre o assunto mostra que Kraft tem boas intenções em seu desejo de tornar as Escrituras relevantes aos receptores. Porém, utiliza a Bíblia como um livro de casos onde exemplos, apenas, são dados daquilo que é a vontade de Deus. Supra-cultural é somente Deus.(22)
2.4. O absolutismo das Escrituras - Bosch nos chama a atenção para este aspecto. Ele diz:
Não existe somente o perigo do relativismo, quando cada contexto forja a sua teologia, feita sob medida para o seu contexto específico, mas também o perigo do absolutismo.
Ele cita como exemplo o ocorrido na Conferência de Melbourne da CWME em 1980, quando representantes da América Latina queriam promulgar a sua teologia contextualizada, a teologia da libertação, como universalmente válida e como foi fortemente rejeitada pelos representantes da Ásia.
Certamente existem outros perigos, porém, podemos condensá-los todos na preocupação de que a Palavra de Deus seja respeitada como autoridade máxima, não subjugada a aspectos antropológicos ou culturais. A interpretação contextualizada precisa verificar quais são os elementos supra-culturais e quais são os relativos a cada cultura. Qualquer tipo de sincretismo é prejudicial e leva, com o tempo, a uma distorção da fé e a um afastamento do autor da fé, Jesus Cristo.

Conclusão
Sinteticamente, a divergência que existe entre a prática de muitos contextos eclesiásticos e os ensinos bíblicos extraídos dos textos estudados e das ponderações aqui feitas são:
1. Falta um trabalho sério e profundo na busca de modelos litúrgicos que atinjam o âmago das pessoas nas diferentes culturas de nosso país e no exterior.
2. Falta um espírito autocrítico que discerne onde estamos reproduzindo costumes e tradições importadas e deixando de avaliá-las, visando uma atualização para o nosso contexto histórico e cultural.
3. Existe pouca ênfase no preparo transcultural para os obreiros que irão para outras culturas no Brasil e fora. Nossos cursos precisam equipar os futuros missionários para a difícil tarefa da contextualização correta.
4. Ao mesmo tempo em que existe um profundo respeito pelas Escrituras e se diz que ela é a "única regra de fé e prática", há também um desleixo com o seu estudo e sua aplicação integral. Fazemos uma seleção dos textos que confirmam nossa tradição doutrinária e litúrgica.
5. Precisamos buscar mais da sensibilidade e da direção dada pelo Espírito Santo, pedindo sabedoria e discernimento, para poder comunicar o evangelho tanto ao homem secularizado, como ao devoto às inúmeras seitas e religiões existentes em nosso país.
Concluindo, é importante se fazer um "check-up" de nossa tradição comparando-a com as Escrituras, com a intenção de corrigir desvios, fortalecer pontos fracos e descobrir ênfases perdidas. A humildade, e não a jactância deveria nos caracterizar como servos de Deus e líderes da Igreja, a fim de que, mais do que nós contextualizarmos a Palavra, nós possamos ser contextualizados (colocados dentro de) na Palavra, sendo transformados por ela, através do poder de Deus e da direção de seu Espírito, conforme o desejo expresso de Paulo em 2Co 3.18.
Uma tarde Bobby começou a fazer perguntas. Estávamos sentados ao redor do fogo. A luz do fogo refletia levemente sobre ele. O seu rosto estava sério.
- Como posso eu andar no caminho de Jesus? - perguntou. Nenhum motilone já fez isso. É algo novo. Não há outro motilone que possa dizer como se faz isso. - Bobby - eu disse - você se lembra de meu primeiro Festival das Flechas, da primeira vez que vi todos os motilones reunidos a fim de cantarem as suas canções? O festival era a cerimônia mais importante na cultura dos motilones.
Ele assentiu com a cabeça. O fogo brilhou por uns instantes e eu pude ver os seus olhos atentamente fixos em mim.
- Você se lembra de que eu estava com medo de subir nas redes tão altas, para cantar, pois tinha medo de que a corda se partisse? E que eu lhe disse que somente cantaria se pudesse ter um pé na rede e outro no chão?
- Sim Bruchko. E que foi que você me disse?
Ele riu. - Eu lhe disse que você precisava ter os dois pés na rede. Você precisava estar suspenso, foi o que lhe disse.
- Sim - eu disse. - Você precisa estar suspenso. É assim que se deve estar quando se segue a Jesus, Bobby. Nenhum homem poderá dizer-lhe como você deve andar na trilha de Jesus. Somente ele poderá fazê-lo. Porém, para descobrir isso, você terá que atar as cordas de sua rede nele, e estar suspenso em Deus.
Bobby não disse palavra alguma. O fogo dançava em seus olhos. Levantou-se e saiu, andando pela noite escura. No dia seguinte ele tinha um vasto sorriso na face.
- Bruchko, eu atei as cordas da minha rede em Jesus. Agora falo uma nova língua.
Não compreendi o que ele queria dizer.
- Você aprendeu a falar um pouco de espanhol, como eu falo? Ele deu uma gargalhada, feliz e gostosa.
- Não, Bruchko, eu falo uma nova língua. Então compreendi. Para os motilones, língua é vida.
Se Bobby tinha uma nova vida, ele possuía um novo modo de falar. A sua fala seria orientada por Cristo.

Referências
1 Dekker, John . Tochas de júbilo (Miami, Editora Vida, 1988) 116.
2 Bosch, David. Transforming mission. (Maryknoll, Orbis Books, 1993) 420. Utilizado inicialmente nos círculos da Theological Education Fund para designar a educação e a formação de pessoas para o ministério da igreja local.
3 Nicholls, Bruce. Contextualização: uma teologia do evangelho e cultural (São Paulo, Edições Vida Nova, 1983) 18.
4 Hesselgrave, David. Communicating Christ cross-culíurally, (2a ed., Grand Rapids, Zondervan, 1991) 136. O livro de Hesselgrave foi traduzido para o português e o primeiro volume de três já se encontra à disposição. Ver Bibliografia.
5 Idem, p. 137.
6 Idem, p. 136.
7 ldem, p. 143, 144.
8 Burns, Barbara Helen. "Contextualização", (apostila de aula mestrado dada na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1991), p. 1.
9 Naturalmente existem outros textos paralelos que poderiam ser estudados, como o caso de Atos 10 - Pedro na casa de Cornélio, At 17- Paulo em Atenas , ou textos que falam da necessidade de mudanças no hábito de vida quando se aceita a Cristo, como Ef 4.17; 1Jo 2.15-17, etc. Escolhemos estes por tipificarem três classes de textos, um sobre uma situação concreta, outro sobre uma declaração de visão ministerial e um mais teológico.
10 Guthrie, Donald. New Testament introduction (Leicester, IVP, 1978) 394. Uma das teorias sobre o surgimento da igreja em Roma, que certamente não foi fundada nem por Pedro nem por Paulo.
11 Green, Michael. Evangelização na igreja primitiva (São Paulo, Edições Vida Nova, 1984) 137, 138.
12 Bruce, F.F. The Book of The Acts (na série TNICNT, Grand Rapids, Eerdmans, 1977) 291, 292.
13 Bruce, op. cit., p. 291.
14 Laubach, Frank. "Epistrpho", em The new international dictionary of New Testament theology (Colin Brown, ed., Grand Rapids, Paternoster e Zondervan 1975) 355.
15 Erdman, Carlos R. Hechos de los Apóstoles (Grand Rapids, T.E.L.L., 1974) 133, 134.
16 Odeberg, Hugo. Korintierbreven (Estocolmo, Suécia, SKD, 1944) 171.
17 Barrett, C.K. A commentary on the first epistle to the corinthians (2a ed., Londres, A & C. Black, 1971) 211.
18 Idem, p. 216.
19 Morris, Leon. I Coríntios - introdução e comentário (série Cultura Bíblica, São Paulo, Mundo Cristão e Edições Vida Nova, 1981) 111.
20 Relatório de Willowbank , em O Evangelho e a Cultura, (série Lausanne, São Paulo, ABU e Visão Mundial, 1983) 20.
21 Kelly, J.N.D. I e 11 Timóteo e Tito - introdução e comentário (série CulturaBíblica, São Paulo, Mundo Cristão e Edições Vida Nova, 1986) 186.
22 Idem, ver discussão p. 186.
23 Stott, John. Tu Porém - A mensagem de 2 Timóíeo (São Paulo, ABU, 1982) 96.
24 Kelly, op. cit., comentários sobre as expressões, p. 187.
25 Dekker, op. cit., p. 100.
26 Beekman, John & Callow, John. A Arte de interpretar e comunicar (São Paulo, Edições Vida Nova, 1992) 50 ss.
27 Conn, Harvey & Sturz, Richard. Teologia da libertação (São Paulo. Mundo Cristão, 1984) 168.
28 Bosch, op. cit., p. 426, 427.
29 Nicholls, op. cit., p. 25.
30 Idem, p. 25.
31 ''O assunto é vasto e o tratamos num trabalho a parte numa comparação entre Kraft, Conn e Richardson. A etnoteologia é tratada por Kraft em seu livro Christianity in Culture, p. 293, 294. Harvie Conn acusa Kraft de se basear em idéias de E. Nida mas ir além em suas extremadas conclusões. Uma discussão sobre isto encontra-se no livro de Conn, Eternal World and Changing Worlds, págs. 151 ss.
32 Ekström, Bertil. "Contextualização'" (monografia apresentada no Mestrado, São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1991).
33 Bosch, op. cit., p. 428.
34 Olson, Bruce. Por esta cruz te matarei (Miami. Editora Vida, 1979) 143, 144.

Referências Auxiliares do Grego
ALAND, K. & outros. The greek New Testament.. Londres, United Bible Societes, 1975.
BAGSTER. Analytical greek lexicon. Londres, Bagster & Sons, 1977.
FRIBERG, Barbara e Timothy. O Novo Testamento grego analítico. SãoPaulo, Edições Vida Nova, 1987.
HEIKEL, Ivar & FRIDRICHSEN, Anton. Grekisk-Svensk Ordbok till Nya Testamentet. Lund, Suécia, Liberlãromedel, 1975.
YOUNG. Young's Analytical Concordance of the Bible. Grand Rapids, Eerdmans, 1977.
ZERWICK, Max & GROSVENOR, Mary. A grammatical analysis of the greek New Testament. Roma, Biblical Institute Press, 1974.



Comentários

POSTAGEM MAIS VISITADA

APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

MISSÕES E EVANGELISMO

ANTROPOLOGIA CULTURAL