FORMAÇÃO MISSIOLÓGICA OU TREINAMENTO MISSIONÁRIO
Autor: Reverendo:
Ronaldo
e Rossana Lidório
O Desafio do
Preparo Missionário
em um Contexto de Prejuízo Histórico.
Para
entendermos os critérios das mudanças na área de ensino missiológico em todo o
mundo nos últimos 30 anos precisamos estudar as tendências teológicas presentes
em cada contexto.
PREJUÍZO
HISTÓRICO
Vivemos em um
prejuízo histórico missionário como todos os países missiologicamente
embrionários onde possuímos uma pequena leva de missiólogos para um grande
número de instituições de treinamento missionário onde a grande maioria de
nossos professores não tiveram a oportunidade de serem expostos a um contexto
transcultural missionário e por outro lado, o grosso dos nossos missionários
mais experientes ainda encontram-se na ativa em diferentes campos.
Este é um
prejuízo histórico comum no momento que nos encontramos, basicamente vivendo a
nossa segunda geração missionária. D.L. Zabunn, professor de missiologia no
Betany Mission Seminariy na África do Sul afirma que normalmente apenas a
partir da sexta geração missionária um pais passa a contar com um número substancial
de missionários envolvidos na formação de novos obreiros e “devemos lembrar que
missionários funcionalmente capazes em seus campos não são necessariamente
missiólogos ou professores de missões”.
Países como a
Coréia do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Brasil e Tanzânia vivem situações
parecidas do ponto de vista do preparo: a falta de uma ponte que una a
realidade do desafio do campo missionário e a presente proposta de preparo
missiológico.
É certo que não
podemos lidar com todas as implicações desta realidade histórica na qual nos
encontramos entretanto creio que podemos minimizar seus efeitos. Precisamos
definir nossas prioridades e limitações em nosso treinamento e formação
missionária. Costumo afirmar que, pela índole evangelística da Igreja brasileira,
temos em nosso território um laboratório natural para a formação de plantadores
de igrejas. Somos uma nação etnicamente multicultural e nossas raízes
histórico/culturais remontam a um passado menos distante que países com
homogenia étnica fazendo com que a chamada ‘Expectativa Cultural” seja menos
gritante.
Para
minimizarmos os efeitos do prejuízo histórico no qual nos encontramos creio que
poderíamos pensar e tentar enfatizar, sob as definições de sua aplicabilidade
funcional, três áreas da formação missio
nária as quais, pelo simples fato de serem comumente apontadas por obreiros
provindos de ‘novos países’ como as principais barreiras na tentativa de uma
verdadeira comunicação do evangelho em grupos mais isolados, constituem para
mim o supra sumo da nossa carência de treinamento integral. São elas a
Antropologia Cultural, Teologia Bíblica e Aprendizado de Línguas.
ANTROPOLOGIA
CULTURAL
Entendamos
inicialmente a relevância da Antropologia Cultural, ou “Antropologia da
Observação Cultural” como definia M. Stuart no início dos anos 50, na
necessária tarefa de ‘explorar a possibilidade da comunicação do evangelho a
outro grupo que, culturalmente, possua outros padrões de valores existenciais
na transmissão de uma mensagem’. Fala a respeito da possibilidade de real
comunicação entre dois grupos distintos com diferentes (e as vezes divergentes)
cosmovisões.
Respondendo a
um missionário que fortemente indagava “mas qual a aplicabilidade da
Antropologia Cultural em meu ministério” comecei a responder dizendo:
“A Antropologia
Cultural, funcionalmente definindo, é um instrumento de reconhecimento das
perguntas existentes em certa cultura, socialmente interpretadas ou não pelo
próprio grupo, entretanto necessárias para se diagnosticar os pontos de tensão
socio-etnologico ali existente. Provê as ferramentas necessárias para o
mapeamento cultural do grupo alvo através da definição da hierarquia social,
hierarquia socio-espiritual, expressões ritualisticas e cerimoniais,
cosmologia, cosmovisões e costumes, linguagem interativa e comunicabilidade. O
alvo da antropologia cultural, missiologicamente falando, é levantar as
perguntas socialmente relevantes afim de receber respostas biblicamente
centradas. O alvo final é fomentar transformação de vida e sociedade através de
um evangelho que faça sentido na cultura receptora e não apenas na mente e
coração daquele que transmite.
Como exemplo
poderíamos pensar sobre o tempo linear e cíclico. Quando um povo animista
possui toda a sua cosmologia definida pelo tempo cíclico (baseado em
acontecimentos que ‘marcam’ o tempo e necessariamente se repetem, não avançam
ou retrocedem) e não linear (como o nosso tempo ocidental que segue uma linha
contínua progressiva e não repetitiva) fazendo com que o dia 4 de julho de 1999
nunca venha a se repetir em nossos calendários, mentes e cosmologia, isto gera
questionamentos socio-existenciais que precisam ser respondidos para a
compreensão, aceitação e viabilidade cultural do evangelho dentre o povo.
Em termos
práticos, é necessário saber quais são as perguntas (este é o trabalho da
Antropologia Cultural) antes de tentar respondê-las (Teologia bíblica). Por
exemplo, expor o evangelho numa perspectiva linear para um povo com cosmovisão
cíclica terá um dos três possíveis resultados:
a) entendê-lo
como uma mensagem alienígena e possivelmente aplicável apenas a uma cultura
estrangeira;
b) entendê-lo
parcialmente e tentar preencher os vácuos deixados com respostas da religião
materna; o que geraria sincretismo religioso;
c) não
entendê-lo.
Deixando o
simplismo óbvio com o qual estamos lidando seria necessário pensarmos, numa
perspectiva do prejuízo histórico no qual vivemos, quais seriam as áreas de
estudo na Antropologia Cultural que fariam nossos missionários mais bem
preparados para o grande desafio. Antes de propô-las devo remarcar que estou
partindo de um pressuposto de envolvimento cultural a nível de M5 ou M6 e assim
sendo, concentrando nossos pensamentos sobre o desafio principalmente entre os
PNAs.
Dentre as mais
variadas áreas da Antropologia como Antropologia Cultural, Etnicismo,
Etnologia, Costumes e Culturas, Fenomenologia Religiosa e Comunicação Social há
duas altamente relevantes para nossos candidatos à obra missionária
transcultural que são Fenomenologia da Religião e Etnologia. A relevância
destas duas áreas de estudo deve-se mais à observação dos comuns erros de campo
(inclusive e principalmente os meus) do que em uma tentativa de estruturar um
currículo ideal de conhecimento antropológico. Dentre estes ‘erros comuns’ há
três que tem vindo à tona quase sempre quando a comunicação é restritiva,
parcial ou simplesmente ausente. Eles giram em torno da falta de compreensão de
que:
1. Nem tudo
o que é diferente é religioso
Entre os
Bassaris, tribo vizinha aos Konkombas com os quais trabalhamos, há um complexo
ritual onde um composto de água e gordura é derramado constantemente sobre o
corpo de alguém morto recentemente, usando-se uma cuia de madeira enquanto
algumas palavras são ditas por uma pequena multidão que se coloca ao redor.
Próximo dali é acesa uma fogueira onde folhas verdes são queimadas enquanto um
pouco de água é aspergida sobre o fogo por pessoas ligadas àquele que morreu.
Lendo um relato de um missionário que esteve entre eles 20 anos atrás ele ao
fim conclui: “É um ato de invocação demoníaca afim de pedir aos espíritos que
guiem aquele que morreu”. Nada mais longe da verdade.
Apesar da tribo
Bassari ser animista e estar debaixo de forte influência do mal, este ato em
particular não passa de uma forma de conservar o corpo do morto durante os dias
de espera pelos parentes de aldeias distantes. A água e gordura têm uma
propriedade de retardar a decomposição do corpo; a cuia é usada porque não há
panelas ou copos; a multidão posta-se ao redor da fogueira porque é assim que
reúnem-se todas as noites mesmo porquê não há energia elétrica, e folhas verdes
são queimadas (com um pouco de água sendo aspergida) afim de produzir bastante
fumaça e espantar os mosquitos. As palavras ditas são provavelmente os
cumprimentos a cada pessoa que chega de outras aldeias para o funeral. Na
verdade este não é um ato religioso mas sim um processo cultural-científico, ou
‘apenas um ato social’ como diria Kenner.
Denomino de
‘neurose espírito-fenomenológica’ a tendência que nós missionários temos de
analisar religiosamente todo e qualquer fenômeno interpretando-o como quem
chegou para dissecar a religiosidade cultural sem entretanto ver o povo como
uma sociedade que vive e não apenas cultua.
2. Nem tudo
o que é cerimonial é demoníaco
Duas posturas
são destrutivas na ação missionária para fins de comunicação: não crer na ação
demoníaca e crer que tudo é ação demoníaca.
Afim de
entender a diferença entre os dois pontos podemos usar o conhecimento
missiológico, nossa teologia, observação e sabedoria. Entretanto creio que
nunca entenderemos a raiz do que é diariamente posto à nossa frente se do alto
não nos for dado discernimento espiritual. Um fator agravante é que os
fenômenos religiosos em uma cultura recém alcançada devem ser entendidos e
interpretados o mais cedo possível afim de ativar a comunicação aplicativa do
Evangelho, o que nos força a tomar posições interpretativas quanto a fenômenos
locais muito cedo, quando ainda estamos pouco imersos culturalmente.
Olhando ao
redor do universo Konkomba poderia citar um grupo expressivo de fenômenos
sociais ou religiosos que necessitam de um esforço de discernimento afim de
identificá-los do ponto de vista espiritual como por exemplo a circuncisão de
rapazes quando passam para a idade adulta tornando-se ‘ujaman’ – homens; o
corte da pele facial formando cicatrizes que apontam para o clã ao qual
pertencem; a dança cerimonial após a morte de alguém; o banho de lama e óleo
antes de um trabalho pesado ou longa viagem; a ‘venda’ das crianças que nascem
após haver morte infantil na família etc.
Outros são
claramente negativos mas igualmente carentes de interpretação social como a
morte e uma criança quando nascem gêmeos abandonando-a numa floresta a noite ou
mesmo o sacrifício de crianças ‘defeituosas’ ou profundamente enfermas. Devemos
entender que uma classificação normativa (demoníaco ou não demoníaco) pode
saciar nossa sede de definições teológicas mas não são suficientes para alinhar
um processo na ética de uma igreja que nasce entre um grupo recém alcançado; há
necessidade de uma interpretação um pouco mais profunda levando em consideração
que entre vários grupos (como animistas, hindus ou budistas) o comum não se
dissocia do sagrado nem o material do espiritual havendo o que pode ser
chamado, quase que paradoxalmente, de ‘integração dialética’. Nota-se na nossa
índole brasileira uma tendência exorcista onde não há demonismo e um
conformismo espiritual quanto à sua real atuação.
3. Nem tudo
o que é cultural é puro
Este é o outro
lado da moeda. O etnicismo defende a pureza natural das culturas intocadas o
que pode em certa instância, influenciar a comunicação.
Devemos ser
sempre relembrados de que o pecado é cultural. Ele não ocorre em um plano supra
humano mas brota do coração do homem envolto em seus conceitos e costumes,
manifestando-se moldado às circunstâncias externas como língua, costumes e meio
ambiente e por fim caindo no mesmo abismo que foi aberto desde o início: a
separação entre o homem caído e o Deus santo. O pecado é cultural, manifesta-se
culturalmente e o homem, em sua cultura, necessita de redenção.
Entre os povos
isolados (meninas dos olhos dos antropólogos etnicistas) não encontramos um
paraíso de pureza cultural mas sim povos curvados ao inimigo, vivendo um
inferno na terra e procurando quase desesperados alguma maneira de redenção,
mesmo que temporária. Procuram redenção nos sacrifícios, ídolos, amuletos,
tabus, magias, rituais demoníacos e penitências.
Entendo que a
redenção está em Jesus, a mensagem é o Evangelho e entregá-la a outros chama-se
Missões.
TEOLOGIA
BÍBLICA
Teologia
bíblica é um termo que deve ser pré conceituado antes de prosseguirmos.
Utilizo-o sob o pressuposto temático. Não se trata portanto de ramos
teológicos, teologia sistemática ou de teologia verdadeiramente bíblicas mas
simplesmente da sistematização bíblico-temática de assuntos específicos, como
‘teologia de anjos’, ‘teologia de pecado’ ou ‘teologia de sofrimento’: um
estudo bíblico temático vetero e neotestamentário. Definindo o termo, sigamos
em frente.
A Antropologia
Cultural tem como missão mapear, localizar e fazer as perguntas certas. Se
olharmos para o Brasil, por exemplo, veremos um grande número de igrejas e
pregadores que provêem diariamente respostas (muitas delas corretas
teologicamente) para perguntas que nunca são feitas. Poucos interessam-se em
estudar e compreender sobre câncer nos ossos quando na verdade o que os aflige
é uma terrível gastrite. Esta é a primeira instrução antropológica cultural na
abordagem de um novo grupo social: descubra as perguntas certas.
Denominações
que, em países da América Latina, tem apresentado uma teologia de ‘prosperidade
e sofrimento’ ou mesmo de ‘bênção e maldição’ (apenas para ficar em dois
exemplos) tem achado público; não necessariamente pela seriedade das respostas
(muitas sérias e outras não) mas sim pela identificação das perguntas. Em um
superficial mapeamento cultural realizado em países socialmente existenciais
como o Brasil facilmente veríamos que duas claras perguntas na mente do povo
são: “Porquê sofremos ?” e “Como melhoraremos ?”
Entretanto
localizar as perguntas certas não pressupõe sucesso na comunicação do
evangelho. É necessário apresentar as respostas certas. Alerta: não as
respostas que irão surtir efeito, satisfazer a alma ou gerar impacto individual
e social: mas sim respostas biblicamente certas.
Dar respostas
certas às perguntas certas normalmente é uma tarefa conflitante. Aqueles que o
fizeram, já no primeiro século, foram apedrejados, expulsos, perseguidos,
denominados de ‘peste’ e ‘transtornadores’. Para aqueles que pensam que uma
genuína e culturalmente coerente exposição do evangelho redundará
necessariamente em um positivo impacto social além de muitos frutos, precisamos
ser relembrados que não se define Missões em termos de resultados mas sim de
fidelidade ao Senhor. A questão final para a apresentação de uma teologia
bíblica que responda à pergunta do coração do homem em sua cultura e língua não
são os resultados humanos mas sim fidelidade ao Senhor e à Sua Palavra.
Nesta altura há
duas verdades óbvias quanto ao treinamento missionário:
Primeiramente
nossos candidatos à obra missionária precisam ser preparados biblicamente.
Estudar a Palavra, conhecê-la, pesquisá-la textualmente, contextualmente e
tematicamente. Investir em um bom preparo bíblico é investir diretamente no
campo.
Em segundo
lugar precisamos entender que a fidelidade transpõe a habilidade. Neste
momento o caráter cristão deveria ser a mais enfática disciplina em nossos
cursos de formação missionária. Como um caráter à imagem de Cristo não pode ser
forjado simplesmente em salas de aula precisamos urgentemente de discipuladores
entre nossos professores de missões.
Uma grande
descoberta pessoal tem sido a primária importância do caráter do missionário
acima de sua habilidade de comunicar inteligivelmente o evangelho transpondo
barreiras linguísticas, culturais, missiológicas etc.
Após três anos
entre os Konkombas, quando a Igreja crescia rapidamente e o Evangelho alcançava
lugares remotos perguntei aos líderes locais certa vez sobre a razão,
principal, que colaborava para a nossa boa comunicação, mencionando três
opções:
1.
Habilidade de falar no dialeto local e ser entendido com
facilidade;
2.
Entendimento cultural, dos costumes e forma de vida Konkomba;
3. Envolvimento
pessoal com a sociedade tribal, sendo aceito e aceitando-a;
Eles então
responderam: “O ponto mais importante para nosso povo parar para ouvi-lo é
porque você sempre sorri quando nos vê, parando para nos cumprimentar e sempre
alegre em ouvir”. Naquele dia escrevi em meu diário: “caráter é mais importante
que habilidade”.
Segundo
Hustmann a história das missões se divide em três partes quanto ao conhecimento
antropológico e aplicabilidade de teologia bíblica. Na etapa em que nos
encontramos os erros antropológicos residem, não na falta do conhecimento mas
na falta da disposição em aplicar o conhecimento. Em suma, um número reduzido
de missionários erra hoje, em um nível básico de comunicação, devido à falta de
entendimento da cultura ou conhecimento bíblico. Os grandes erros de
comunicação são conseqüência de uma decisão em não aplicar o conhecimento
adquirido. Problema de caráter, não de estudo.
Este princípio
é também aplicável em todo um universo de existência missionária onde a grande
maioria dos obreiros que voltam forçosamente do campo o fazem devido a
problemas de relacionamento enquanto um pequeno índice apontaria para a falta
de habilidade em aculturar-se.
Caráter, em
última instância, é o fator primordial que define relacionamentos, e relacionamentos
(citando Abdulai Syin ) definem a pressuposição social de aceitação ou rejeição
da mensagem que será pregada. Isto implicaria no fato de que, mesmo sendo o
evangelho o poder de Deus, este Deus deseja que nós que o transmitimos, o
façamos com fidelidade de vida e não apenas de conhecimento.
No universo
Konkomba o julgamento de caráter precede a mensagem. A tribo terá disposição em
ouvir aqueles que julga serem ‘mbamon’, palavra que significa algo como
‘altruísta’ ou ‘verdadeiro’, título dado a homens e mulheres que, através de
suas vidas e relacionamentos, são confiáveis o suficiente para serem ouvidos
pelo grupo. Não se recebe o título de ‘mbamon’ instantaneamente mas através de
um processo de relacionamento interpessoal que espera-se ser mais prolongado
quando trata-se de um estrangeiro. Obviamente falar e compreender a língua,
morar com o povo e participar dos eventos importantes da tribo criam o ambiente
para que o grupo tribal o estude e veja ‘suas reações quando irado ou
provocado’, diz um provérbio Konkomba que fala sobre os passos para a aceitação
social. Entretanto eu diria que 70% da aceitabilidade e credibilidade dada a um
missionário em uma outra cultura, para citar o nosso contexto transcultural,
reside no julgamento do caráter a partir do relacionamento interpessoal e não
da habilidade cultural. Esta institucionalização da aceitabilidade do
mensageiro e sua mensagem não pode ser vista de maneira formal e sistematizada
na grande maioria dos grupos sociais (através de cerimônias ou ritos por
exemplo) entretanto permanece o princípio de que, apesar da mensagem ir além do
mensageiro, a credibilidade do conteúdo da mensagem será avaliada pelo grupo a
partir do caráter do mensageiro.
APRENDIZAGEM DE
LÍNGUAS
O aprendizado
de línguas, juntamente à tradução da Palavra, é uma área de gritante
necessidade de atenção em nossos cursos de formação de obreiros transculturais.
Primeiramente
pela óbvia necessidade do obreiro transcultural aprender uma nova língua para
sobreviver, se relacionar e expor o evangelho, enfim: comunicar-se.
O segundo
motivo possui uma gravidade extra, e também histórica. Quando pensamos sobre o
grupo que identificamos como PNAs (Povos Não Alcançados) surge uma pergunta
crucial:
“Porquê os PNAs
permanecem não alcançados ainda em nossos dias?”
Seria pela
falta de conhecimento etnológico: quem eles são, quantos são, onde estão e como
chegar até eles ?
Na verdade o
motivo circula ao redor de barreiras humanas. Fala-se que 80% dos povos
considerados não alcançados já eram bem conhecidos mais de 10 anos atrás e
constavam na lista de diferentes agências e juntas missionárias ao redor do
mundo. Se ainda permanecem não alcançados, isto deve-se à existência de
barreiras que os mantém dentro de uma retoma quase intocável. Estas barreiras são
lingüísticas, antropológicas, missiológicas, políticas, geográficas, religiosas
e espirituais.
Pela seleção
natural quanto aos povos a serem alcançados ao longo das décadas, os que
permanecem não alcançados neste fim de milênio podem ser considerados o ‘remanescente
mais difícil’. Grande parte destes PNAs já sofreram algum tipo de tentativa de
contato missionário ou exposição do evangelho no passado, sem sucesso,
colocando-os na categoria de ‘mais difíceis’ em algum nível, e muitos deles a
nível lingüístico.
Um exemplo
simples poderia ser dado quanto às tribos ao norte de Gana na África. Aquelas
que permanecem não alcançadas são nitidamente as que possuem línguas mais
complexas, são culturalmente mais isoladas, influenciadas pelo Islã ou habitam
regiões geograficamente mais isoladas. As mais resistentes ao evangelho, direta
ou indiretamente, formam hoje o seleto grupo de PNAs e isto coloca um peso
extra na responsabilidade de formar hoje a força missionária.
Quando falamos
sobre Aprendizagem de Línguas estamos tratando sobre um ponto vital na
comunicação missionária. Em média o missionário que envolve-se com um grupo
pouco evangelizado fora do nosso país necessitará, no mínimo, de aprender duas
novas línguas: a primeira delas chamamos de ‘básica’ (inglês, francês, árabe
etc) que será usada para se estabelecer em um novo país onde habita o grupo
alvo; a segunda delas chamamos ‘missiológica’ e é justamente a língua ou
dialeto do grupo alvo. Em muitas circunstâncias o grupo alvo pode usar mais de
uma língua ou dialeto criando novas ramificações.
Há portanto
grande necessidade de investirmos a nível linguístico-prático na formação de
nossos obreiros transculturais: enfatizar um bom curso de aprendizagem de
línguas; expô-los à uma segunda língua, desafiá-los a romper a barreira da
adaptação lingüística, ensinar-lhes fonética, fonologia, morfologia e conceitos
de tradução da Palavra, mesmo que informal e para transmissão verbal do
evangelho. Enfim, dar-lhes as ferramentas.
Do ponto de
vista lingüístico há uma grande diferença entre o ideal missionário e a
realidade missionária. Um exemplo pessoal. Quando chegamos em Gana fomos
desafiados a trabalhar com um
grupo conhecido como ‘Konkombas’ que, segundo os registros, falavam uma
variação de 4 ou 5 dialetos. Chegando até eles e conhecendo-os de perto vemos
hoje que ‘Konkombas’ é apenas uma expressão estrangeira sendo esta uma palavra
totalmente desconhecida e sem sentido para a própria tribo. Também não são uma
tribo mas algo que poderíamos chamar de ‘Nação Tribal’: um agrupamento de
etnias irmãs sem concentração social mas com interesses comuns, onde são
faladas 23 línguas e 64 dialetos diferentes, apenas dentre os grupos e sub
grupos que conseguimos estudar. Nós hoje trabalhamos com 1 destes 23 grupos
(que para facilitar a comunicação no Brasil continuamos a tratar como
‘Konkombas’) que se auto-entitula Bimonkpelnn onde são falados 9 diferentes
dialetos, alguns tão distantes ao ponto de necessitarmos em média de três
intérpretes a cada culto, apenas entre os ‘Bimonkpelnn’. A realidade não
romântica do campo força-nos a investir na formação lingüística de nossos
obreiros pois as barreiras existem para serem ultrapassadas e foi-nos confiada
esta tarefa.
Formação
missiológica ou Treinamento missionário ?
Gostaria de
concluir propondo fazermos uma diferenciação curricular entre formação
missiológica e treinamento missionário.
Uma diferença
inicial e a mais visível seria de Objetivo. A primeira tem como alvo formar
missiólogos, pensadores dos princípios que regem a missão, entre os quais estão
muitos pastores e vários professores de missões além de executivos de agências
missionárias. Estes precisam compreender, visualizar e traçar estratégias. Já o
Treinamento missionário tem como alvo aqueles que em um certo momento ver-se-ão
na linha de frente face a face com um povo, nação, grupo social ou etnia com os
quais precisarão se relacionar passando por todo o processo de interação social
com a finalidade de, após muitas fronteiras serem cruzadas, propor-lhes o
evangelho. Estes também precisam compreender, visualizar e criar estratégias
mas é necessário ir além. Precisam de ferramentas práticas com as quais
trabalhar. Não basta saber da existência de línguas foneticamente complexas, é
necessário aprender como articulá-las; não basta conhecer os exemplos clássicos
de diferenças culturais, é preciso conhecer o método de mapeá-las; não é
suficiente apenas o conhecimento missiológico de exposição temática do
evangelho, é preciso saber como fazer. O treinamento missionário precisa ir
além da formação missiológica da mesma forma que um médico, além de anos de
estudo e conhecimento precisa realizar a ‘residência médica’ e se especializar
antes de estar hábil a ir ao campo de trabalho.
O missiólogo se
satisfaz quando encontra a resposta da sua pergunta, mas o missionário precisa
testar a resposta no campo e vê-la funcionar. Os que precisam de formação
missiológica tem os olhos voltados para a sistematização enquanto os que
procuram um treinamento missionário atentam para a aplicabilidade.
É necessário
caminhar. Implementar e traduzir para a realidade das nossas escolas de missões
os desafios que conhecemos. Seja na formação de missiólogos ou no treinamento
missionário que seja visto em nós, missões brasileiras, o genuíno caráter de
Cristo. Isto revelará que não apenas conhecemos o caminho, mas também andamos
por ele. Deus nos abençoe.
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