TRADUZINDO A BÍBLIA PARA OS POVOS INDÍGENAS
Introdução
Um dos homens que mais admiro em minha vida
chama-se Albert Graham1].
“Seu Alberto” , como é conhecido, tem dedicado mais de quarenta anos de sua
vida aos povos indígenas do Brasil. Ele gastou vinte e seis anos para produzir
o Novo Testamento na língua Sateré-Maué e depois ainda teve fôlego para tentar
alcançar mais duas outras tribos na Amazônia2].
O curioso é que, ainda jovem, quando se candidatou à missão, fora rejeitado por
acharem que ele não tinha aptidão para lingüística e tradução. Foi aceito
somente após muita insistência. Por isso sempre nos dizia que a sua história
era uma prova de que Deus ainda usa mulas, uma referência ao episódio bíblico
da mula de Balaão! Hoje, com a idade de 74 anos, continua ativo, assessorando a
tradução do Antigo Testamento para a língua Sateré, desta vez feita pelos
próprios indígenas.
Vale a pena?
A história do Sr. Alberto e de outros tantos que
dedicaram as suas vidas para traduzir a Bíblia para línguas indígenas tem
suscitado a seguinte pergunta: vale realmente a pena alguém gastar a vida
inteira para traduzir as Escrituras Sagradas para as tribos brasileiras? Não
são elas tão pequenas? Não estão eles, os indígenas, aprendendo rapidamente o
português? Certa feita, um presbítero de minha denominação, ao ouvir-me dar um
relatório sobre o trabalho indígena e todos os passos necessários à tradução da
Bíblia, perguntou-me se não seria mais fácil fazer uma grande campanha no
Brasil, levar todos os indígenas para o estádio Maracanã, pregar-lhes o
evangelho e acabar logo com esta história! O meu amigo refletia uma visão
empresarial do Reino. Esta visão está muito em moda hoje. Para nos engajarmos
numa empreitada missionária, primeiro calculamos os gastos, quanto tempo vai
durar o projeto, a porcentagem de lucros, etc. Só então decidimos se devemos
iniciar o “negócio” ou não.
O que o meu amigo empresário não sabia é que debaixo do termo “índio”, existem
centenas de grupos étnicos com costumes e línguas diferentes. Estes costumes
estão arraigados e intimamente ligados a cosmovisões diferentes. Esta
cosmovisão é passada de geração em geração, de forma oral, através de sua
língua. Pensar que possamos alcançar a todos estes grupos da mesma forma,
usando o mesmo instrumento (língua portuguesa) é um equívoco. Nossa estratégia
precisa ser como a do nosso Senhor. A encarnação de ambos, mensageiro e
mensagem, é condição sine qua no para a proclamação do euaggelion.
O processo de tradução
A seguir passo a descrever um pouco do processo de tradução para que o leitor
tenha uma idéia das etapas envolvidas.
Período pré-tradução
Neste período, o missionário primeiro terá que se aproximar do povo alvo. Esta
aproximação, salvo em casos especiais, dá-se via contato com a FUNAI e/ou
pessoas-chave da comunidade indígena. Em geral, missionários atuam em áreas
sociais como saúde, educação, desenvolvimento comunitário, etc. Em alguns
casos, os missionários são lingüistas e estão na área com a função específica
de estudar a língua indígena. Nosso primeiro trabalho numa área indígena, por
exemplo, foi com Aurá e Auré, dois remanescentes tupi onde atuei como lingüista3].
Posteriormente, na área indígena Tembé, tivemos acesso devido ao nosso
envolvimento na área de educação.
Após o acesso à comunidade, inicia-se o processo de aprendizagem da língua e
cultura. Neste período, o missionário faz uso das ferramentas aprendidas em seu
treinamento lingüístico e antropológico: na lingüística, a fonética o ajudará a
identificar e registrar os sons da língua; a fonologia o ajudará a determinar o
sistema dos sons daquela língua e a estabelecer um alfabeto para posterior
programa de alfabetização; a morfologia o ajudará a compreender a estrutura
interna das palavras, como elas são formadas, quantos morfemas a constituem,
etc.; a gramática o ajudará a compreender como as palavras se juntam em
estruturas maiores no nível da oração, etc. Finalmente, a análise do discurso
da língua o ajudará a identificar tipos diferentes de discurso, tais como
narrativas, poesias, discursos exortativos, etc. Na antropologia, ele deverá
observar e participar de rituais, de atividades do dia-a-dia, e a compreender a
cosmovisão do povo. Nesta fase ele também deverá estar atento às chamadas
“pontes culturais”, ou seja, aspectos culturais que possam servir de ponte na comunicação
do evangelho.
Após adquirir um conhecimento razoável de várias áreas da língua e cultura, o
missionário irá buscar vocabulário que possa usar na tradução. Que palavras
usará para ‘Deus’, ‘anjos’, ‘demônios’, etc. No momento em que escrevemos este
artigo estamos pesquisando o vocabulário chave na língua Awa-Guajá. Nestas duas
últimas semanas temos buscado não somente os termos apropriados para ‘Deus’ ,
mas, principalmente, o conceito de Deus na cultura. Descobrimos que há duas
palavras que poderíamos usar: Tapana e Maíra. Tapana é
um ser sobrenatural. Sua morada é o ywa ‘céu’. Ele tem um filho
pequeno que também mora no ‘céu’. Até aqui tudo coincide mais ou menos com o
Deus da Bíblia. Porém, Tapana tem duas mulheres, o ‘céu’onde
ele mora é diferente do conceito bíblico de ‘céu’. Ele tem a aparência de uma
onça, não tem qualquer relacionamento pessoal com os Awa e não é o seu criador.
Por estas razões, por enquanto, estamos descartando a possibilidade de
usar Tapana como o termo para ‘Deus’ na tradução. Maíra é
outro ser sobrenatural. Ele também vive no céu, tem um filho. Ele é o criador
dos Awa, fazendo-os de uma árvore. Maíra também tem esposa.
Ela o traiu com a Mucura e teve um filho com ela. A onça comeu
a mulher de Maíra. O filho de Maíra e o filho de Mucura andam
pelo mundo fazendo magias. Até o momento, também achamos que não dá para
usar Maíra para ‘Deus’. Talvez a solução seja criar uma
palavra nova. Isso foi feito em Guarani e em várias outras línguas da família.
Os tradutores preferiram usar o termo Nhanderuete ‘Nosso Dono’ ao
invés do tradicional tupãn usado pelos padres jesuítas.
Poderemos usar areruete ‘nosso pai verdadeiro’.
Período da tradução
Até que o missionário chegue a este ponto, é muito provável que pelo menos dois
anos já tenham se passado. Agora ele tem um domínio razoável da língua, podendo
se comunicar relativamente bem em várias situações. Ele irá, então, procurar
pessoas da comunidade indígena que possam auxiliá-lo no processo de tradução.
Em geral, um ou dois ajudantes são contratados no início do trabalho. Às vezes,
é preciso tentar várias vezes até que a pessoa adequada seja encontrada.
Achadas as pessoas certas, os primeiros versículos são traduzidos.
Tem sido prática comum no passado começar a tradução pelo evangelho de Marcos.
Mais recentemente, porém, alguns tradutores têm preferido começar com histórias
do Antigo Testamento para que assim um pano de fundo seja estabelecido,
facilitando a compreensão da razão da vinda do Filho de Deus ao mundo. Algumas
organizações missionárias preferem um outro método, traduzindo histórias-chave
da Bíblia inteira em estudos cronológicos antes de traduzir o texto bíblico
propriamente.
Período pós-tradução
A tradução não é um fim em si mesma. Ela visa a plantação de igrejas em uma
determinada etnia. Ela é também vital no processo de discipulado. Portanto,
paralelamente à tradução, deve haver um programa para incentivar o seu uso. Em
geral, este processo é levado a cabo por missionários de outras agências
missionárias/denominações, com o apoio dos tradutores. Material auxiliar e
explicativo é normalmente produzido também nesta fase. O ideal é que isso
ocorra simultaneamente ao processo de tradução.
Desafios
No processo de tradução, o tradutor enfrenta uma
série de desafios. A seguir, enumero alguns a titulo de exemplo.
Lingüístico
Existe um antigo ditado que diz “tradutore traditore” “tradutor, traidor”.
Traduzir não é tarefa fácil. Embora as línguas, tenham muitas coisas em comum,
também têm muitas peculiaridades. Estas peculiaridades se transformam, às
vezes, em verdadeiras barreiras à comunicação do evangelho. Há poucos dias
estava eu verificando a tradução do livro de Levítico para a língua Guajajara.
Esta tradução fora feita pelo casal Carlos e Carla Harrison da missão Wycliffe
para tradução da Bíblia. Em apenas três versículos pude ver como ajustes
lingüísticos são necessários para que a mensagem seja compreendida
corretamente. Em Levítico 20:214],
lê-se “Se um homem tomar a mulher de seu irmão,
imundícia é…” O primeiro problema enfrentado pelo
tradutor foi que não existe uma palavra genérica para “irmão”. Os Guajajara
classificam os irmãos em ‘irmão mais velho’ (tyky’yr) e ‘irmão mais novo’
(tywyr). Se o tradutor usasse o primeiro termo daria a entender que não seria
pecado para o “outro” irmão. É preciso, portanto, saber se o texto está se
referindo ao irmão mais velho ou ao irmão mais novo, ou a ambos. Neste caso,
sendo que o texto trata de irmão em termos genéricos, referindo-se a todos os
irmãos, independentemente de qualquer ordem de idade, o missionário incluiu os
dois termos, pois o autor bíblico tinha todos os irmãos em mente quando
escreveu o texto. Situação semelhante no verso 19 do mesmo capítulo com o termo
tia: . Mais uma vez o tradutor teve que parar pois não há palavra geral para
“tia”. É preciso saber se o texto está se referindo à irmã do pai ou à irmã da
mãe. Ainda no caso de irmã da mãe, é preciso saber se o texto se refere à irmã
mais velha ou à irmã mais nova. Portanto, a palavra “tia” em português tem três
correspondentes em Guajajara. Como, mais uma vez, o termo tia é usado em
sentido genérico, o tradutor incluiu as três palavras. Levítico trouxe também
desafios bem mais complexos do que estes. O tradutor se defrontou com uma série
de termos desconhecidos na cultura Guajajara. O que fazer para traduzir
“altar”, “tabernáculo”, “sacrifício”, “candelabro”, etc. É… realmente dá dor de
cabeça só em pensar! Muitos destes termos tiveram que ser criados a partir da
riqueza morfológica e sintática da língua. Assim, “altar” foi traduzido como “o
lugar onde os animais são queimados para Deus (tudo isso dito em 4 palavras na
língua!)”, “sacrifício” ficou como “o ato de queimar um animal como oferta para
Deus”, etc.
Às vezes, os reajustes lingüísticos são necessários por absoluta falta de
estrutura gramatical equivalente na língua receptora. É o caso, por exemplo, da
voz passiva que é usada abundantemente no Novo Testamento. Não há voz passiva
nas línguas tupi-guarani do Brasil. Toda vez que esta estrutura aparece no NT
terá que ser reajustada. Uma frase como “seus pecados foram perdoados” terá que
ser traduzida como “Deus perdoou os seus pecados”.
Para o leitor que talvez ache estranha esta liberdade do tradutor de fazer
reajustes lingüísticos na tradução, deixe-me dizer que até mesmo certas
traduções consideradas relativamente literais também os fizeram. Veja, por
exemplo, o texto de Juizes 3:24 na versão de Almeida Revista e Atualizada:
“Tendo saído, vieram os servos do rei e viram, e
eis que as portas da sala de verão estavam trancadas; e disseram: Sem dúvida
ele está aliviando o ventre na privada da sala de verão”.
A expressão traduzida “aliviando o ventre” não é
realmente o que encontramos no texto Hebraico. Uma tradução literal seria
“cobrindo os pés”. Como esta é uma expressão idiomática desconhecida dos
falantes de português5],
os tradutores preferiram eliminar a figura contida no original e dar o seu
significado diretamente. Isto é perfeitamente aceitável do ponto de vista dos
princípios de tradução. Embora a forma tenha mudado, o sentido original foi
preservado.
Histórico-cultural
A Bíblia é um livro cultural. Uso aqui a palavra cultura em seu sentido
antropológico6].
Ela está cheia de costumes e tradições de povos particulares, em um determinado
momento da história destes povos. As culturas, porém, não são iguais. Há
conceitos conhecidos de certas culturas que são desconhecidos de outras. Eu me
lembro, quando criança, quanta dificuldade tive para entender as palavras de
Jesus sobre construir uma casa na rocha. Eu ficava sempre imaginando como devia
ser difícil cavar o alicerce sobre uma rocha! Como todo mundo, eu estava lendo
as Escrituras com os meus óculos culturais! Só muito tempo depois, quando
estava no seminário, que vim a entender a forma cultural judaica de construir
casa.
Então, como fazer para traduzir um conceito desconhecido? Há pelo menos três
caminhos que o tradutor pode seguir: primeiro, ele pode usar um substituto
cultural que tenha a mesma função. Numa cultura, por exemplo, que não conheça
pão, o tradutor poderá usar um substituto cultural. O beiju tem sido usado por
alguns tradutores como um bom substituto. Inclusive usado na Ceia do Senhor
como o primeiro elemento servido. Segundo, o tradutor poderá fazer uma
associação com um elemento conhecido da cultura. A palavra carneiro em Tembé,
por exemplo, é o animal ‘que parece com o veado’. Terceiro, o tradutor poderá
usar uma frase explicativa do conceito ao invés de uma palavra equivalente ou
substituta. A palavra ‘vinho’, por exemplo, foi traduzida como ‘a bebida
extraída de uma fruta chamada uva’. Você deve estar pensando, com expressões
desse tamanho, não é à toa que os Novos Testamentos em língua indígena sejam
mais grossos do que a Bíblia inteira em português[7]!
Espiritual
A história tem demonstrado, e não poderia ser
diferente, que o envolvimento num programa de tradução implica em envolvimento
numa guerra espiritual. É fato marcante que o inimigo mor de Deus não deseja
que as Escrituras Sagradas sejam traduzidas e estejam acessíveis a estes povos.
É possível que não tenha havido livro mais perseguido na história da humanidade
do que a Bíblia Sagrada. Poderíamos gastar páginas e mais páginas narrando
exemplos de oposição satânica ao processo de tradução. Aqui vão apenas alguns.
1.Queimando histórias bíblicas. Uma certa
antropóloga convenceu uma comunidade indígena no norte do Brasil a queimar as
histórias bíblicas traduzidas pelos missionários.
2.Problemas com o computador. Ontem, meu computador
foi atacado por um vírus e não fosse as cópias de segurança que fizemos para o
texto do Antigo Testamento em Guajajara teríamos perdido tudo. Isso acontece
com muita freqüência com tradutores. Naturalmente, não estou advogando que
qualquer problema eletrônico deva ser interpretado como conflito espiritual.
Isso acontece a toda hora e com todo mundo. Porém, a freqüência e os tipos de
problemas que acontecem não deixam dúvida de que, em certos momentos, a origem
de um problema com equipamento tem mesmo razão espiritual!
3.Doenças e opressão- muitas vezes os tradutores
são acometidos de doenças ou opressão espiritual. Satanás tenta barrar o
trabalho de todas as formas!
4.Problemas políticos com o governo- vários
tradutores no Brasil já foram expulsos de área indígena pela FUNAI. Conheço um missionário
que chegou a ser retirado da aldeia pela Polícia Federal; e ainda um outro que
foi trocado por duas espingardas.
Conclusão
2002 foi um ano muito especial para a história da
tradução da Bíblia para línguas indígenas brasileiras. Ele marcou a dedicação
da primeira tradução da Bíblia inteira para uma língua indígena. Trata-se da
Bíblia Wawai. Muitos anos foram necessários para que ela fosse produzida. Valeu
a pena? Tenho certeza que os Waiwai dirão: claro que valeu!
Finalmente, acredito que, porque estamos tão
habituados com o fato de termos As Escrituras disponíveis em nossa língua
materna, não percebemos o valor disso. Mas, para povos que, em pleno século
vinte e um, ainda aguardam para ter acesso à Palavra de Deus, a tradução é
celebrada com júbilo e alegria. Termino com as palavras de oração de um ancião
Apinaje, após receber o Novo Testamento em sua língua:
“Olá Deus, aqui estamos para ler a tua fala no
papel. É muito bom tê-la em nossa própria língua. Nós temos feito muitas coisas
más, mas o Teu filho desceu e morreu para pagar pela nossa maldade. Que bom que
o Senhor o enviou para nós. Agora nós iremos ler a tua fala no papel. Ajuda-nos
a obedece-la. Nós queremos te seguir. É “só!”·
Norval Silva
[1] Al
Graham é norte-americano e trabalha pela Sociedade Internacional de
Lingüística.
[2] Estes
trabalhos não puderam ser continuados pois ele foi expulso da área indígena
pela FUNAI.
[3] Ainda
hoje trabalho com Aurá e Auré, considerados a menor tribo do mundo!
[4] Extraído
da edição Revista e Atualizada de Almeida
[5] Mais
tecnicamente, a expressão é muito provavelmente um eufemismo, uma forma de
suavizar a informação, usando termo mais cortês.
[6] O
termo cultura pode ser definido como o conjunto de costumes e tradições de um
determinado grupo humano.
[7] Depois
de um tempo, quando o conceito se torna conhecido de todos, normalmente estas
expressões se tornam desnecessárias e numa revisão do texto às vezes são
modificadas.
07/03
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