SUSTENTANDO AS CORDAS

 



OBREIROS EM TEMPO INTEGRAL PODEM E DEVEM SER SUSTENTADOS POR IGREJAS ENVIADORAS?


Carlos Madrigal Mir

 

A obra transcultural se distancia muito do funcionamento de uma empresa que visa o lucro. É uma obra que tem sua origem e seus recursos em Deus, e, para realizá-la, ele usa instrumentos humanos, dentre eles o sustento financeiro de obreiros.

A reflexão a seguir foi preparada, em princípio, para um círculo de igrejas da Espanha que colaboraram conosco ao longo dos anos. A finalidade não é estabelecer uma forma de sustento, mas identificar alguns princípios para o apoio de futuros candidatos à obra. Não se aborda todo o leque de modelos possíveis, apenas uma proposta concreta.

Ela parte do conceito chamado “viver por fé”, que se popularizou com George Müller e Hudson Taylor, segundo o qual o obreiro não dá a conhecer suas necessidades a ninguém, apenas ao Senhor em oração, esperando que ele mova os corações dos doadores para que discirnam a quem apoiar e com quanto. O artigo consiste em uma reflexão crítica que tenta encontrar um equilíbrio entre a discrição do obreiro e a clareza e mordomia das partes implicadas.

Não só me identifico com muitos dos princípios do assim chamado modelo “viver por fé”, mas também, como família, os ensinamos, praticamos e vivemos por mais de duas décadas. Contudo, devemos reconhecer que tais princípios não são axiomáticos na Palavra, e não deveríamos fazer deles “mandamentos de Deus” (Mc 7.7)[1].

Viver “por fé” no Novo Testamento não está nunca relacionado com o sustento do obreiro: Rm 1.17; 9.30, 32; 2Co 5.7; Gl 5.5; 1Tm 1.4; Hb 10.38; 11.33. Todos, no ministério ou no trabalho chamado “secular”, vivemos (ou deveríamos viver) por fé (Mt 6.25-34), e todos os modelos são modelos de fé posto que buscam a obediência à comissão divina e a dependência baseada em suas promessas.

Para definir um modelo na Palavra, devemos distinguir o que são:

·         Os mandamentos – Ex.: “ide…”, Mt 28.19;

·         Os princípios – Uma pauta geral deduzida: por ex., de At 1.8 deduzimos o princípio local, regional e transcultural da obra;

·         As regras ou instruções que são para um tempo e contexto limitados – Ex.: não ir aos gentios, Mt 10.5;

·         Os exemplos ou aplicações – Como pôr em prática os mandamentos e/ou princípios, At 13.3;

·         As exceções – Ex. em At 16.7, o impedimento para pregar na Ásia Menor.

Assim, o modelo que Paulo seguiu para seu sustento é exemplar, mas não normativo.

Estão nos capítulos 8 e 9 da 2ª carta aos Coríntios os textos que tratam de forma mais extensa o tema das ofertas. Ali se fala das ofertas como “iniciativa própria” (8.3, 11-12) e não sistemáticas, porque não está tratando de apoio a obreiros, mas de ajudar os santos de Jerusalém pela fome (2Co 9.12). Era uma arrecadação pontual para uma necessidade pontual, não uma situação de apoio sustentado àqueles encomendados e enviados por uma igreja. E, apesar de ser “voluntária”, Paulo os exorta (9.5) por meio dos emissários que envia a que ofertem (i.e., lhes pede; 2Co 8.7, 11; 9.3). Evidentemente não exige, mas reclama aquilo pelo que as igrejas tinham se comprometido (8.10-11; 9.5). Assim, constatamos que as igrejas podem fazer compromissos e devem cumpri-los, devem se recordar do que disseram. Isso é mostrar que são “obedientes às boas-novas de Cristo” (9.13). Quem deve fazer esse trabalho? Em breve, veremos.

O DIREITO DOS APÓSTOLOS A “NÃO TRABALHAR”

Em 1ª Coríntios 9, Paulo, desta vez, sim, fala de sustento de “apóstolos” (mensageiros), e menciona o direito deles a “não trabalhar” (v. 6) em outra frente (mesmo que ele opte por um sistema misto para maior mobilidade no avanço da obra). Ele afirma que o apoio é também um “direito” (v. 12, 18): o direito do obreiro de receber um salário (v. 14, Lc 10.7 e 1Tm 5.18). Ainda assim, Paulo enfatiza que, com os coríntios, nunca fez uso desse direito. Então, isso determina uma norma vinculatória para todos os obreiros e os tempos?

O apóstolo aos gentios também aconselha, quase exige, o celibato para uma maior mobilidade na missão (1Co 7.7, 26, 29; 9,5), e, no entanto, não promovemos tal modelo. De novo, trata-se de aplicação particular e válida, mas não normativa, dos mandamentos e princípios do Senhor e da Palavra. O mesmo Paulo é quem pontua que é uma opção (1Co 9.5-6).

A menção “Preferimos suportar qualquer coisa a fim de não sermos obstáculo para as boas-novas a respeito de Cristo” (1Co 9.12) parece se referir a não seguir o exemplo de alguns que abusavam do “direito” e ainda por cima se vangloriavam disso; e assim não ser de tropeço (cf. 2Co 11.9-12). Contudo, aqui Paulo não está instruindo sobre um modelo de sustento, e, de todos os modos, não se refere a renunciar ao apoio das igrejas emissoras, mas à sua preferência pessoal por não receber apoio dos coríntios. Não apenas aqui, mas em mais ocasiões, Paulo assegura que tinham o direito de exigir um apoio como obreiro do Senhor:

“Ainda que, como apóstolos de Cristo, tivéssemos o direito de fazer certas exigências…” (1Ts 2.7), e, de novo, na epístola seguinte, pontua que isso é um “direito” (2Ts 3.9). Ou seja, não se trata de um direito que ele só podia reclamar aos de Corinto, mas de um princípio também válido para o resto das igrejas.

Em Romanos, Paulo diz que “quando [eu] for [à Espanha] (…), vocês poderão me ajudar com a viagem” (Rm 15.24 com 3Jo 6, 8), ou seja, pede a uma igreja que não o conhece nem o enviou que contribua com sua viagem e ministério. Comparando isso com: “Faça todo o possível para ajudar Zenas, o advogado, e Apolo na viagem deles. Providencie que tenham tudo de que precisam” (Tt 3.13), vemos que pedir para o sustento – inclusive se o obreiro não é conhecido pessoalmente – não está em conflito com “viver por fé”.

Ser “encomendado” ou “encaminhado” (como aparece em algumas traduções) não se refere, aqui, a uma cerimônia de ordenação, mas a se identificar com o obreiro que está saindo, fato que também pode ser reiterado em diversas ocasiões e por diversas igrejas (At 14.23, 26; 15.40). Consiste em invocar a orientação e o favor do Senhor e, ao mesmo tempo, identificar-se com as necessidades materiais daquele que parte. É o compromisso de segurar a corda para que outro desça ao poço!

Outro aspecto é que Paulo, como líder da equipe transcultural (o mais próximo no NT da definição de agência), assume a responsabilidade de prover tanto as próprias necessidades como “as dos que estavam comigo” (At 20.34). Para isso, faz a ponte com igrejas para que apoiem outros para “que tenham tudo de que precisam” (Tt 3.13). Da mesma forma age João em relação a outros obreiros: “Peço que continue a suprir as necessidades deles de modo agradável a Deus” (3Jo 6). O objetivo é que as igrejas aprendam “a fazer o bem ao suprir as necessidades urgentes dos outros; assim, ninguém será improdutivo” (Tt 3.14). Então, pedir com boas maneiras é ensinar a dar para ter bons frutos!

Da mesma forma, na carta aos Filipenses, Paulo busca o apoio da igreja (4.17), ou seja, convida a contribuir. Mas não busca uma “oferta/dádiva” – doma (G1390) aparece somente quatro vezes no NT (aqui em Fp 4.17 e em Mt 7.11, Lc 11.13 e Ef 4.8), e, pelo contexto, é possível deduzir que se trata de um presente específico ou de esmola –, ele deseja “que sejam recompensados por sua bondade”. Tal “contabilidade” sugere um rendimento que se acumula quando as ofertas se repetem: “…vocês enviaram ajuda em mais de uma ocasião” (Fp 4.16). Paulo também destaca as igrejas que não participaram de seu apoio: “Como sabem, filipenses, vocês foram os únicos que me ajudaram financeiramente quando lhes anunciei as boas-novas pela primeira vez e depois segui viagem saindo da Macedônia. Nenhuma outra igreja o fez” (Fp 4.15). As igrejas dando, recebiam! Quando não se comprometiam, saíam perdendo (4.17). Paulo ousaria censurar as igrejas que não davam se não existisse um compromisso ou obrigação a que apelar?

Em 2Co 11.8, Paulo afirma: “Para servir vocês sem lhes ser pesado, tomei contribuições de outras igrejas que eram mais pobres que vocês”. Por isso, quando recusa o apoio dos coríntios para “não sermos obstáculo para as boas-novas a respeito de Cristo”, não se refere a receber ou não apoio regular, nem descarta um modelo de apoio com compromissos, pelo contrário. Salário (do grego opsónion: porções para um soldado, seu estipêndio ou pagamento) não indica uma contribuição pontual, mas o provisionamento e o pagamento regular a um soldado. Paulo menciona isso como a base do empreendimento divino, assim como na vida militar: “Que soldado precisa pagar pelas próprias despesas [i.e., opsónion]?” (1Co 9.7). Inclusive, ao dizer que tomou “contribuições de outras igrejas que eram mais pobres”, sugere que as igrejas que o apoiavam fizeram um esforço além de suas possibilidades. O apoio financeiro de Paulo, até onde sabemos, vinhas dessas igrejas, não tanto de apoios particulares!

O sistema dos dízimos, sacrifícios e sustento dos levitas (Lv 6, 7, 27, Nm 5, 18 e Dt 12, 18 com 1Co 10.18) nos fala de um apoio regular e sistemático que, sem ser optativo, não anula a boa vontade ou voluntariedade dos que dão. Ou seja, o fato de o apoio ser sistemático e fixo não é o que causa doadores relutantes, mas, sim, a má disposição do coração e não ver o mandamento do Senhor como um privilégio (2Co 8.4). Por outro lado, o dízimo não é uma exigência divina? Não o dar não é roubar ao Senhor? (Ml 3.8-10) O fato de algo ser uma obrigação não anula que possa ser feito voluntariamente: “Se o fizesse por minha própria iniciativa, mereceria pagamento. Mas não tenho escolha, pois Deus me confiou essa responsabilidade” (1Co 9.17). Quer dizer, a obrigatoriedade de algo não dispensa a voluntariedade ou a boa disposição. “Deus ama quem dá com alegria”; aquele que se centra não na obrigação, mas naquele para quem dá (2Co 8.5; 9.7).

O sustento baseado na mera simpatia ao obreiro gera, às vezes, exageros nos relatos ou irresponsabilidade nos doadores, o que evidentemente não desqualifica o sistema em si. Mas, sim, devemos refletir sobre certos pontos frágeis e desequilíbrios nas ênfases de um modelo em detrimento de outros. É como o dilema entre passar a sacola da oferta ou somente colocar uma caixa na saída da igreja. Se com a caixa a gente se descuida, e é preciso lembrar da necessidade de dar, passemos a sacola!

A Palavra em si censura que o objetivo do ministério seja ganhar dinheiro (1Tm 6.5), e, é claro, condena todo lucro desonesto (1Pe 5.2 com 1Tm 3.3 e Tt 1.7). Mas também adverte sobre “não amordaçar” o que sai para a obra para arar ou trilhar (1Co 9.9-10 e 1Tm 5.18), de forma que faça seu trabalho com a tranquilidade de que suas necessidades serão supridas e possa sair para a obra “com esperança” (1Co 9.10).

Se advogamos pelo “viver por fé”, devemos ensinar também a “sustentar por fé”, a “orçar por fé” e sobre as “promessas de fé”. Isso quer dizer comprometer-se com apoios regulares, sistemáticos e múltiplos: “…em mais de uma ocasião… minhas necessidades foram plenamente supridas” (Fp 4.16, 18). Se os doadores não têm os recursos garantidos no presente, estão garantidos “por meio das riquezas gloriosas que nos foram dadas em Cristo Jesus” (Fp 4.19). Então, evidentemente, é necessário agir de acordo com o “prometido” (2Co 9.2-5).

Se a igreja na Espanha teve uma atitude “anticlerical” de desconfiança dos “assalariados”, marcada e provocada por traumas históricos, esse não é o Espírito da Palavra (“Certamente não foi Deus quem os levou a pensar assim”, Gl 5.8). Em vez de destacar tal fiasco e nos conformarmos com ele, devemos corrigi-lo e educar as igrejas para vencer tais preconceitos. Assim, a Palavra nos anima a sistematizar as ofertas! (1Co 16.2) Portanto, ao determinar um modelo de sustento, devemos aplicar os mandamentos e princípios bíblicos à nossa circunstância e necessidade. Mas é difícil dizer que, entre os diferentes modelos que se desenvolveram na história da igreja, alguns sejam “mais bíblicos que outros”. Nossa meta deve ser estimular um modelo de apoio espiritual, sustentado e sustentável, que ajude as igrejas a promover a saída de obreiros.

A Palavra não fala “dos que saem para a obra”, mas dos que “são enviados” (Rm 10.15; além de 3Jo 7). Portanto, a responsabilidade de que isso seja possível recai sobre os que enviam. Não podemos esperar de braços cruzados que se despertem vocacionados se não falamos das nações, se não visitamos as nações, se não praticamos o tema e se não criamos um sistema de envio e apoio (inclusive financeiro). As igrejas locais deverão determinar qual modelo se encaixa melhor com suas características e possibilidades, e assumir seu papel protagonista.

Definitivamente, façam o que fizerem, deverão fazê-lo para a glória do Senhor. Isto é, para que ele seja louvado pelo papel que todos assumem ao fazer a obra da forma mais digna e responsável possível. Assim seja!

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Sobre o autor: Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia. Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.


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