ANTROPOLOGIA CULTURAL
Rev: Ronaldo Lidório
PARTE UM
Entendamos inicialmente a
relevância da Antropologia Cultural, ou “Antropologia da Observação Cultural”
como definia M. Stuart no início dos anos 50, na necessária tarefa de ‘explorar
a possibilidade da comunicação do evangelho a outro grupo que, culturalmente,
possua outros padrões de valores existenciais na transmissão de uma mensagem’.
Fala a respeito da possibilidade de real comunicação entre dois grupos
distintos com diferentes (e as vezes divergentes) cosmovisões.
Respondendo a um missionário
que fortemente indagava “mas qual a aplicabilidade da Antropologia Cultural em
meu ministério” comecei a responder dizendo:
“A Antropologia Cultural,
funcionalmente definindo, é um instrumento de reconhecimento das perguntas
existentes em certa cultura, socialmente interpretadas ou não pelo próprio
grupo, entretanto necessárias para se diagnosticar os pontos de tensão socio-etnológico
ali existente. Provê as ferramentas necessárias para o mapeamento cultural do
grupo alvo através da definição da hierarquia social, hierarquia
socio-espiritual, expressões ritualísticas e cerimoniais, cosmologia,
cosmovisões e costumes, linguagem interativa e comunicabilidade. O alvo da
antropologia cultural, missiologicamente falando, é levantar as perguntas socialmente
relevantes afim de receber respostas biblicamente centradas. O alvo final é
fomentar transformação de vida e sociedade através de um evangelho que faça
sentido na cultura receptora e não apenas na mente e coração daquele que
transmite.
Como exemplo poderíamos pensar
sobre o tempo linear e cíclico. Quando um povo animista possui toda a sua
cosmologia definida pelo tempo cíclico (baseado em acontecimentos que ‘marcam’
o tempo e necessariamente se repetem, não avançam ou retrocedem) e não linear
(como o nosso tempo ocidental que segue uma linha contínua progressiva e não
repetitiva) fazendo com que o dia 4 de julho de 1999 nunca venha a se repetir
em nossos calendários, mentes e cosmologia, isto gera questionamentos
socio-existenciais que precisam ser respondidos para a compreensão, aceitação e
viabilidade cultural do evangelho dentre o povo.
Em termos práticos, é
necessário saber quais são as perguntas (este é o trabalho da Antropologia
Cultural) antes de tentar respondê-las (Teologia bíblica). Por exemplo, expor o
evangelho numa perspectiva linear para um povo com cosmovisão cíclica terá um
dos três possíveis resultados:
a) entendê-lo como uma mensagem alienígena e
possivelmente aplicável apenas a uma cultura estrangeira;
b) entendê-lo parcialmente e tentar preencher os
vácuos deixados com respostas da religião materna; o que geraria sincretismo
religioso;
c) não entendê-lo.
Deixando o simplismo óbvio com
o qual estamos lidando seria necessário pensarmos, numa perspectiva do prejuízo
histórico no qual vivemos, quais seriam as áreas de estudo na Antropologia
Cultural que fariam nossos missionários mais bem preparados para o grande
desafio. Antes de propô-las devo remarcar que estou partindo de um pressuposto
de envolvimento cultural a nível de M5 ou M6 e assim sendo, concentrando nossos
pensamentos sobre o desafio principalmente entre os PNAs.
Dentre as mais variadas áreas
da Antropologia como Antropologia Cultural, Etnicismo, Etnologia, Costumes e
Culturas, Fenomenologia Religiosa e Comunicação Social há duas altamente
relevantes para nossos candidatos à obra missionária transcultural que são
Fenomenologia da Religião e Etnologia.
A relevância destas duas áreas de estudo deve-se
mais à observação dos comuns erros de campo (inclusive e principalmente os meus)
do que em uma tentativa de estruturar um currículo ideal de conhecimento
antropológico. Dentre estes ‘erros comuns’ há três que tem vindo à tona quase
sempre quando a comunicação é restritiva, parcial ou simplesmente ausente. Eles
giram em torno da falta de compreensão de que:
1. NEM TUDO O QUE É DIFERENTE É
RELIGIOSO
Entre os Bassaris, tribo
vizinha aos Konkombas com os quais trabalhamos, há um complexo ritual onde um
composto de água e gordura é derramado constantemente sobre o corpo de alguém
morto recentemente, usando-se uma cuia de madeira enquanto algumas palavras são
ditas por uma pequena multidão que se coloca ao redor. Próximo dali é acesa uma
fogueira onde folhas verdes são queimadas enquanto um pouco de água é aspergida
sobre o fogo por pessoas ligadas àquele que morreu. Lendo um relato de um
missionário que esteve entre eles 20 anos atrás ele ao fim conclui: “É um ato
de invocação demoníaca afim de pedir aos espíritos que guiem aquele que
morreu”. Nada mais longe da verdade.
Apesar da tribo Bassari ser
animista e estar debaixo de forte influência do mal, este ato em particular não
passa de uma forma de conservar o corpo do morto durante os dias de espera
pelos parentes de aldeias distantes. A água e gordura têm uma propriedade de
retardar a decomposição do corpo; a cuia é usada porque não há panelas ou
copos; a multidão posta-se ao redor da fogueira porque é assim que reúnem-se
todas as noites mesmo porquê não há energia elétrica, e folhas verdes são
queimadas (com um pouco de água sendo aspergida) afim de produzir bastante
fumaça e espantar os mosquitos. As palavras ditas são provavelmente os
cumprimentos a cada pessoa que chega de outras aldeias para o funeral. Na
verdade este não é um ato religioso mas sim um processo cultural-científico, ou
‘apenas um ato social’ como diria Kenner.
Denomino de ‘neurose
espírito-fenomenológica’ a tendência que nós missionários temos de analisar
religiosamente todo e qualquer fenômeno interpretando-o como quem chegou para
dissecar a religiosidade cultural sem entretanto ver o povo como uma sociedade
que vive e não apenas cultua.
2. Nem tudo o que é cerimonial
é demoníaco
Duas posturas são destrutivas
na ação missionária para fins de comunicação: não crer na ação demoníaca e crer
que tudo é ação demoníaca. Afim de entender a diferença entre os dois pontos
podemos usar o conhecimento missiológico, nossa teologia, observação e
sabedoria. Entretanto creio que nunca entenderemos a raiz do que é diariamente
posto à nossa frente se do alto não nos for dado discernimento espiritual. Um
fator agravante é que os fenômenos religiosos em uma cultura recém alcançada
devem ser entendidos e interpretados o mais cedo possível afim de ativar a
comunicação aplicativa do Evangelho, o que nos força a tomar posições
interpretativas quanto a fenômenos locais muito cedo, quando ainda estamos
pouco imersos culturalmente.
Olhando ao redor do universo
Konkomba poderia citar um grupo expressivo de fenômenos sociais ou religiosos
que necessitam de um esforço de discernimento afim de identificá-los do ponto
de vista espiritual como por exemplo a circuncisão de rapazes quando passam
para a idade adulta tornando-se ‘ujaman’ – homens; o corte da pele facial
formando cicatrizes que apontam para o clã ao qual pertencem; a dança
cerimonial após a morte de alguém; o banho de lama e óleo antes de um trabalho
pesado ou longa viagem; a ‘venda’ das crianças que nascem após haver morte
infantil na família etc. Outros são claramente negativos mas igualmente
carentes de interpretação social como a morte e uma criança quando nascem
gêmeos abandonando-a numa floresta a noite ou mesmo o sacrifício de crianças
‘defeituosas’ ou profundamente enfermas.
Devemos entender que uma classificação normativa
(demoníaco ou não demoníaco) pode saciar nossa sede de definições teológicas
mas não são suficientes para alinhar um processo na ética de uma igreja que
nasce entre um grupo recém alcançado; há necessidade de uma interpretação um
pouco mais profunda levando em consideração que entre vários grupos (como
animistas, hindus ou budistas) o comum não se dissocia do sagrado nem o
material do espiritual havendo o que pode ser chamado, quase que
paradoxalmente, de ‘integração dialética’. Nota-se na nossa índole brasileira
uma tendência exorcista onde não há demonismo e um conformismo espiritual
quanto à sua real atuação.
3. NEM TUDO O QUE É CULTURAL É
PURO
Este é o outro lado da moeda. O
etnicismo defende a pureza natural das culturas intocadas o que pode em certa
instância, influenciar a comunicação. Devemos ser sempre relembrados de que o
pecado é cultural. Ele não ocorre em um plano supra humano mas brota do coração
do homem envolto em seus conceitos e costumes, manifestando-se moldado às
circunstâncias externas como língua, costumes e meio ambiente e por fim caindo
no mesmo abismo que foi aberto desde o início: a separação entre o homem caído
e o Deus santo. O pecado é cultural, manifesta-se culturalmente e o homem, em
sua cultura, necessita de redenção.
Entre os povos isolados
(meninas dos olhos dos antropólogos etnicistas) não encontramos um paraíso de
pureza cultural mas sim povos curvados ao inimigo, vivendo um inferno na terra
e procurando quase desesperados alguma maneira de redenção, mesmo que
temporária. Procuram redenção nos sacrifícios, ídolos, amuletos, tabus, magias,
rituais demoníacos e penitências. Entendo que a redenção está em Jesus, a
mensagem é o Evangelho e entregá-la a outros chama-se Missões.
TEOLOGIA BÍBLICA
Teologia bíblica é um termo que
deve ser pré conceituado antes de prosseguirmos. Utilizo-o sob o pressuposto
temático. Não se trata portanto de ramos teológicos, teologia sistemática ou de
teologia verdadeiramente bíblicas mas simplesmente da sistematização
bíblico-temática de assuntos específicos, como ‘teologia de anjos’, ‘teologia
de pecado’ ou ‘teologia de sofrimento’: um estudo bíblico temático vetero e
neotestamentário. Definindo o termo, sigamos em frente.
A Antropologia Cultural tem
como missão mapear, localizar e fazer as perguntas certas. Se olharmos para o
Brasil, por exemplo, veremos um grande número de igrejas e pregadores que provêm
diariamente respostas (muitas delas corretas teologicamente) para perguntas que
nunca são feitas. Poucos interessam-se em estudar e compreender sobre câncer
nos ossos quando na verdade o que os aflige é uma terrível gastrite. Esta é a
primeira instrução antropológica cultural na abordagem de um novo grupo social:
descubra as perguntas certas.
Denominações que, em países da
América Latina, tem apresentado uma teologia de ‘prosperidade e sofrimento’ ou
mesmo de ‘bênção e maldição’ (apenas para ficar em dois exemplos) tem achado
público; não necessariamente pela seriedade das respostas (muitas sérias e
outras não) mas sim pela identificação das perguntas. Em um superficial
mapeamento cultural realizado em países socialmente existenciais como o Brasil
facilmente veríamos que duas claras perguntas na mente do povo são: “Porquê
sofremos?” e “Como melhoraremos?”
Entretanto localizar as
perguntas certas não pressupõe sucesso na comunicação do evangelho. É
necessário apresentar as respostas certas. Alerta: não as respostas que irão
surtir efeito, satisfazer a alma ou gerar impacto individual e social: mas sim
respostas biblicamente certas.
Dar respostas certas às
perguntas certas normalmente é uma tarefa conflitante. Aqueles que o fizeram,
já no primeiro século, foram apedrejados, expulsos, perseguidos, denominados de
‘peste’ e ‘transtornadores’. Para aqueles que pensam que uma genuína e culturalmente
coerente exposição do evangelho redundará necessariamente em um positivo
impacto social além de muitos frutos, precisamos ser relembrados que não se
define Missões em termos de resultados mas sim de fidelidade ao Senhor.
A questão final para a apresentação de uma teologia
bíblica que responda à pergunta do coração do homem em sua cultura e língua não
são os resultados humanos mas sim fidelidade ao Senhor e à Sua Palavra.
Nesta altura há duas verdades
óbvias quanto ao treinamento missionário: primeiramente nossos candidatos à
obra missionária precisam ser preparados biblicamente. Estudar a Palavra,
conhecê-la, pesquisá-la textualmente, contextualmente e tematicamente. Investir
em um bom preparo bíblico é investir diretamente no campo. Em segundo lugar
precisamos entender que a fidelidade transpõe a habilidade. Neste momento o
caráter cristão deveria ser a mais enfática disciplina em nossos cursos de
formação missionária. Como um caráter à imagem de Cristo não pode ser forjado
simplesmente em salas de aula precisamos urgentemente de discipuladores entre
nossos professores de missões.
Uma grande descoberta pessoal
tem sido a primária importância do caráter do missionário acima de sua
habilidade de comunicar inteligivelmente o evangelho transpondo barreiras
linguísticas, culturais, missiológicas etc.
Após três anos entre os
Konkombas, quando a Igreja crescia rapidamente e o Evangelho alcançava lugares
remotos perguntei aos líderes locais certa vez sobre a razão, principal, que
colaborava para a nossa boa comunicação, mencionando três opções:
1. Habilidade de falar no dialeto local e ser
entendido com facilidade;
2. Entendimento cultural, dos costumes e forma de vida Konkomba;
3. Envolvimento pessoal com a sociedade tribal, sendo aceito e aceitando-a;
Eles então responderam: “O
ponto mais importante para nosso povo parar para ouvi-lo é porque você sempre
sorri quando nos vê, parando para nos cumprimentar e sempre alegre em ouvir”.
Naquele dia escrevi em meu diário: “caráter é mais importante que habilidade”.
Segundo Hustmann a história das
missões se divide em três partes quanto ao conhecimento antropológico e
aplicabilidade de teologia bíblica. Na etapa em que nos encontramos os erros
antropológicos residem, não na falta do conhecimento mas na falta da disposição
em aplicar o conhecimento. Em suma, um número reduzido de missionários erra
hoje, em um nível básico de comunicação, devido à falta de entendimento da
cultura ou conhecimento bíblico. Os grandes erros de comunicação são
conseqüência de uma decisão em não aplicar o conhecimento adquirido. Problema
de caráter, não de estudo.
Este princípio é também
aplicável em todo um universo de existência missionária onde a grande maioria
dos obreiros que voltam forçosamente do campo o fazem devido a problemas de relacionamento
enquanto um pequeno índice apontaria para a falta de habilidade em
aculturar-se. Caráter, em última instância, é o fator primordial que define
relacionamentos, e relacionamentos (citando Abdulai Syin ) definem a
pressuposição social de aceitação ou rejeição da mensagem que será pregada.
Isto implicaria no fato de que, mesmo sendo o evangelho o poder de Deus, este
Deus deseja que nós que o transmitimos, o façamos com fidelidade de vida e não
apenas de conhecimento.
No universo Konkomba o julgamento
de caráter precede a mensagem. A tribo terá disposição em ouvir aqueles que
julga serem ‘mbamon’, palavra que significa algo como ‘altruísta’ ou
‘verdadeiro’, título dado a homens e mulheres que, através de suas vidas e
relacionamentos, são confiáveis o suficiente para serem ouvidos pelo grupo. Não
se recebe o título de ‘mbamon’ instantaneamente mas através de um processo de
relacionamento interpessoal que espera-se ser mais prolongado quando trata-se
de um estrangeiro. Obviamente falar e compreender a língua, morar com o povo e
participar dos eventos importantes da tribo criam o ambiente para que o grupo
tribal o estude e veja ‘suas reações quando irado ou provocado’, diz um
provérbio Konkomba que fala sobre os passos para a aceitação social. Entretanto
eu diria que 70% da aceitabilidade e credibilidade dada a um missionário em uma
outra cultura, para citar o nosso contexto transcultural, reside no julgamento
do caráter a partir do relacionamento interpessoal e não da habilidade
cultural. Esta institucionalização da aceitabilidade do mensageiro e sua
mensagem não pode ser vista de maneira formal e sistematizada na grande maioria
dos grupos sociais (através de cerimônias ou ritos por exemplo) entretanto
permanece o princípio de que, apesar da mensagem ir além do mensageiro, a
credibilidade do conteúdo da mensagem será avaliada pelo grupo a partir do
caráter do mensageiro.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário, ele é muito importante para melhorarmos o nosso trabalho.
Obrigado pela visita, compartilhe e
Volte Sempre.