REALIDADE INDÍGENA NO BRASIL
Em 1573 Frei Ernesto Fonseca,
analisando os habitantes do novo país conquistado pela força portuguesa,
afirmou que: “… além de contrários ao trabalho e disciplina de qualquer tipo,
seguem práticas tão pagãs e alheias a Deus que torna-se improvável que tenham
uma mente evoluída que possa compreender a salvação, ou serem dignos dela”.
Creio que seja correto pensarmos que a
visão da grande massa de brasileiros não tenha mudado muito ao longo destes
últimos 500 anos e que as primeiras e errôneas impressões sobre os indígenas
influenciaram a nossa missiologia bíblica e estratégia missionária para o
Brasil até hoje.
Convivemos com esta visão distorcida a
respeito da comunidade nativa do nosso país quando até o termo “índio” passou a
ser sinônimo de preguiça ou ignorância e “programa de índio” aponta para algo
mal planejado e que sempre dá errado.
Calcula-se que havia 1,5 milhão de
indígenas no ano de 1530 enquanto hoje eles não passam de 300.000 em todo o
território nacional entre os quais escondem-se as mais duras realidades e
desafios espirituais e assim somos chocados com pessoas como a índia Thuthurudé
da tribo Deni que um dia exclamou: “Ore por mim ! Quero ouvir o evangelho antes
de morrer” ‘, ‘Há três importantes verdades sobre a realidade indígena
brasileira que precisamos levar em consideração antes de seguirmos adiante.
1. O “bloco indígena” em nosso país estava
totalmente desassociado do movimento de crescimento de Igreja do restante da
nação e a maior prova disto é que segundo o missiólogo Enoque Faria temos hoje
o mesmo número de missionários entre indígenas que tínhamos 10 anos atrás,
mostrando que este é um movimento colocado à parte pela grande massa de igrejas
brasileiras.
2. A obra missionária bem como os missionários
que trabalham em países além mar possuíam mais reconhecimento, ou status
ministerial, do que missionários que atuavam entre indígenas brasileiros
mostrando que em nossa prática missionária quanto mais longe melhor.
3. Pelo menos 80% dos candidatos à obra
missionária transcultural em seminários e cursos bíblicos com os quais me
deparava possuíam um forte desejo de servir ao Senhor além mar e poucos
pensavam na possibilidade indígena. Para entendermos a realidade indígena atual
olharemos rapidamente alguns aspectos.
1.
REALIDADE POPULACIONAL E LINGUÍSTICA
Trata-se de uma realidade desconhecida
por muitos onde mais de 300.000 índios dividem-se em cerca de 251 etnias
distintas representando mais de 180 línguas diferentes. Dentre estas, apenas 26
possuem o Novo Testamento completo traduzido em seus idiomas e outras 59
possuem porções, entretanto mais de 120 tribos necessitam urgentemente de uma
tradução das Escrituras.
Apesar das 25 Agências Missionárias que
bravamente atuam entre os índios em nosso país ainda contamos com mais de 100
tribos totalmente não alcançadas além de outras 19 em fase de estudo. Segundo
estatísticas de junho de 2001 do Banco de Dados do Departamento de Assuntos
Indígenas da AMTB (tendo o Pr Rinaldo de Mattos como organizador e o missiólogo
Paulo Bottrel como pesquisador) o cenário indígena é como se segue: Tribos
conhecidas: 218 (população: 353.881) Tribos isoladas: 33 (população: 1.853)
Tribos a serem pesquisadas: 50 (população estimada: 2.735) Tribos com
existência duvidosa: 48 (população: 2.217) Total de tribos existentes: 349
(população: 360.686)
A situação das tribos indígenas em
relação à distribuição da própria população segue o seguinte diagrama: 52
tribos com menos de 100 pessoas 115 tribos entre 100 e 1.000 pessoas 53 tribos
entre 1.000 e 10.000 pessoas 5 tribos entre 10.000 e 20.000 pessoas 2 tribos
entre 20.000 e 30.000 pessoas 1 tribo com mais de 30.000 pessoas 23 tribos com
população indeterminada Em relação ao evangelho as tribos indígenas são
classificadas da seguinte forma: 72 não alcançadas 46 alcançadas só por Missões
Católicas 4 alcançadas só por Leigos 2 alcançadas só com Tradução 75 alcançadas
satisfatoriamente 8 alcançadas e com Liderança Autóctone 9 com situação
indeterminada 118 sem presença missionária evangélica.
A realidade a respeito desta centena de
tribos brasileiras não alcançadas envolve línguas complexas, lugares
inacessíveis, possibilidade de embates tribais, enfermidades, isolamento e
especialmente restrições legais. É preciso sentar e calcular o preço da
construção da torre.
2.
REALIDADE CULTURAL
Há alguns mitos entre nós.
Mito número
1: As culturas indígenas são puras em seus
estados naturais. Antropologicamente há entre todas as culturas da terra o
conceito de pecado, e em quase a totalidade étnica mundial regras e normas para
que este pecado seja punido e haja possibilidade de restauração. Quando vemos
um grupo isolado na Amazônia não devemos esperar encontrar ali um paraíso
social pois em uma visão um pouco mais próxima o que veremos é um grupo milenar
a procura de respostas que não possuem. O pecado manifesta-se culturalmente.
Mito número
2: O evangelho não muda a cultura. O
evangelho respeita a cultura entretanto é inocência missiológica afirmarmos que
o evangelho não muda a cultura pois a própria razão do evangelho vem com o
pressuposto de transformação em todos os níveis da existência humana.
Uma comunidade indígena animista que
aceita o conteúdo do evangelho em suas vidas para de temer os deuses,
sacrificar aos espíritos, reverenciar os ancestrais e praticar a poligamia,
apenas para citar alguns exemplos mais visívies.
O evangelho promove profundas mudanças
pois cremos que este evangelho é supra-cultural: responde a perguntas e
conflitos de todos os povos em todas as gerações e salva a todo o que crê –
branco ou índio.
Mito número
3: O bloco indígena não deve ser
prioridade da Igreja Brasileira porque é formado pela minoria populacional. É
certo que algumas das menores etnias do mundo estão entre os indígenas
brasileiros onde tribos inteiras podem ser formadas por menos de 20 pessoas.
O maior grupo indígena brasileiro é a
tribo Yanomami que possui cerca de 10.000 índios e há várias tribos compostas
por apenas 30, 50 ou 100 pessoas. Em uma visão humanista pragmática alguns
diriam: plantar igrejas entre grupos minoritários não é viável. Entretanto na
viabilidade do Reino muitas vezes nos esquecemos que uma igreja não deve ser
plantada na expectativa de gerar riqueza ou estrutura social mas sim porque uma
alma vale mais do que o mundo inteiro. Portanto se a visão de Deus é o mundo,
as menores tribos indígenas em nosso país devem encabeçar nossa atual
prioridade missionária pois há um mundo bem perto de nós ainda não alcançado
pelo que evangelho que um dia nos conquistou.
Mito número 4: A ação missionária contribui para a
destruição étnico-cultural indígena. Um grave engano. Começamos o trabalho
missionário em geral pelo movimento linguístico onde o missionário lingüista
grafa o idioma nativo e alfabetiza os indígenas em sua própria língua materna
assegurando que esta língua não morrerá como aconteceu com mais de 35 grupos
indígenas que falam apenas o português e com grave descaracterização cultural.
Portanto não promovemos o etnocídio nem
a etnofagia cultural. Continuamos com exemplos como a Missão Caiuá que chegando
antes da Funai entre os Caiuás em 1928 estruturou o idioma e registrou em
cartilhas boa parte da riqueza nativa preparando-os para que a cultura não
morresse no inevitável confronto com a cultura exterior. A figura de Palinteh
fala por si só afirmando que “… quando vi o homem branco decidi ser como ele
para saber o que era importante na vida. Um engano. Com o evangelho descobri
que Jesus ama o índio. Não é preciso ser branco para ser salvo. Hoje sou
cristão e sou mais índio”.
3.
REALIDADE MISSIONÁRIA E COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO
Observando grupos indígenas animistas e
suas sociedades vemos que a religião está na raíz de cada cultura como um fator
determinante dos princípios da vida. Sem exageros poderíamos afirmar que, na
cosmovisão animista, religião é vida e vida é religião. De forma simples
poderíamos definir Animistas como um povo no qual, em todas as coisas, é
religioso. Estudando alguns grupos animistas já alcançados pelo evangelho com
diferentes níveis de influência cristã começamos entender que em muitas
situações há um abismo de conceitos, interpretações e valores entre os
conceitos cristãos e a forma tribal de entender religião gerando assim altas
barreiras para o amadurecimento e crescimento da igreja.
É necessário entender que a mensagem do
evangelho não é uma proposta importada para a cultura alvo nem mesmo um diálogo
aberto onde valores bíblicos são negociados. É portanto uma resposta (supra
cultural mas culturalmente aplicável) de Deus para homens de todas as culturas
em todas as gerações, respondendo as questões mais profundas de cada coração.
Assim sendo torna-se profundamente
importante percebermos quais são as ‘perguntas’ que desafiam a sociedade alvo
antes de começarmos a expor as respostas. Tradicionalmente o trabalho
missionário envolve trazer o evangelho como um pacote fechado que deve ser
entendido em seu contexto original. Entretanto, sem conhecer as questões que
atormentam e desafiam a cultura alvo torna-se impossível abordar as áreas de
tensão na cosmovisão animista especialmente quando tratamos de uma sociedade
onde a base do princípio da vida está na possibilidade de resolver problemas
diários. O resultado de uma apresentação do evangelho sem pré análise cultural
tem sido ao longo da história o sincretismo religioso ou a simples falta de
entendimento do evangelho. Creio que, na tentativa de avaliar o impacto do
evangelho em um grupo que vive em contexto animista, há três principais
questões que deveríamos tentar responder: – Eles percebem o evangelho como
sendo uma mensagem relevante em seu próprio universo? – Eles entendem os
princípios cristãos em relação à cosmovisão tribal? – Eles aplicam os valores
do evangelho como respostas para os seus conflitos de vida?
Para que isto aconteça é necessário
observar alguns critérios para a comunicação do evangelho:
1. Toda comunicação do evangelho dever ser baseada nos
princípios bíblicos não sendo negociada pelos pressupostos culturais das
culturas doadoras e receptoras do mesmo. Entendo que a Palavra de Deus é tanto
transculturalmente aplicável quanto supra-culturalmente evidente. É portanto
suficiente para todo homem em todas as culturas e gerações.
2. A comunicação transcultural do evangelho
dever ter como objetivo final ver a Igreja de Jesus plantada de forma
autóctone, com capacidade própria para expansão e amadurecimento. O treinamento
de uma comunidade autóctone deve, portanto, estar na mente do movimento
missionário antes mesmo da sua chegada.
3. A comunicação transcultural do evangelho deve
ser uma atividade realizada a partir da observação, estudo, aplicação e
constante reavaliação da mensagem que está sendo comunicada. O objetivo desta
constante vigilância é propor um evangelho que possa ser traduzido
culturalmente fazendo sentido também para a rotina da vida. É necessário fazer
o povo perceber que Deus fala a sua língua. Fazendo isto esperamos apresentar
Cristo como resposta para as questões da vida no universo animista. Um Cristo
que seja solução, também, para seu mundo. O desafio que temos pela frente vai
além de catalogar, pesquisar, fazer contato, grafar a língua e estruturar o
estudo cultural das 100 tribos não alcançadas brasileiras.
Nosso alvo é levar-lhes um evangelho
que faça sentido, seja compreendido no próprio universo tribal e ver nascer ali
uma Igreja fiel e temente a Deus a caminho de um movimento autóctone. Para isto
necessitamos de missionários dispostos a se desgastarem durante uma vida
inteira, igrejas que paguem o preço da fiel intercessão, pais que abram mão de
filhos vocacionados, conselhos missionários que olhem para o bloco indígena
como desafio iminente, e acima de tudo graça, muita graça de Deus sobre nós.
Ouvimos o clamor dos povos indígenas
vindo de várias partes e de diferentes maneiras. Uma delas por boca de um índio
Yanomami que disse: “Ouvi dizer que o homem branco pensa que não temos barulho
dentro de nosso peito, que entre nós, os Yanomamis, não há conflitos e que guardamos
a nossa floresta.
Os brancos falam o que pensam, mas na
verdade não nos conhecem.(…) Não nos amamos, odiamos uns aos outros, brigamos
batendo no peito uns dos outros. Não conseguimos conter nossa própria maldade”.
É preciso colocarmos a mão no arado e não olhar para trás.
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Autor: Ronaldo Lidório.
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