DEUS USA ÀQUELES QUE NÃO SÃO, PARA CONFUNDIR OS QUE SÃO...
AOS 46 ANOS, A FREIRA CONGOLESA ANGÉLIQUE NAMAIKA NÃO DEIXA QUE A DURA REALIDADE DA CIDADE DE DUNGU, NA PROVÍNCIA ORIENTAL DA RDC, APAGUE SUA ESPRANÇA NO FUTURO.
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O sorriso aberto e franco no rosto é uma
de suas marcas registradas. Aos 46 anos, a congolesa Angélique Namaika
não deixa que a dura realidade da cidade de Dungu, na Província Oriental da
República Democrática do Congo (RDC), apague sua esperança no futuro.
A bordo de sua bicicleta, ela percorre
diariamente as ruas empoeiradas da vila onde mora, região devastada por 30 anos
de guerra civil, para dar apoio às mulheres vítimas da violência relacionadas
ao conflito interno do Congo.
O trabalho desta mulher, que por meio do
seu Centro para Reintegração e Desenvolvimento já apoiou mais de duas mil
mulheres congolesas, acaba de ser reconhecido pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), que a concedeu o prestigiado Prêmio
Nansen para Refugiados.
Angélique optou por dedicar sua vida às
mulheres congolesas obrigadas a deixar suas casas para escapar da violência de
grupos rebeldes armados, como o Exército de Resistência do Senhor (LRA, em
inglês), originário de Uganda.
O conflito no Congo já deslocou cerca de
2,6 milhões de pessoas, e aproximadamente 320 mil seguem nesta situação na
Província Orientale.
Entre as jovens ajudadas pela Irmã
Angélique estão muitas ex-prisioneiras do LRA, vítimas da violência de gênero –
como o estupro, por exemplo. Quando conseguem escapar do cativeiro, essas
mulheres precisam enfrentar o trauma e a discriminação por parte da própria
comunidade para tentar se reintegrar à sociedade.
Atualmente, 150 mulheres são atendidas
pelo Centro para Reintegração e Desenvolvimento, associação da qual a Irmã
Angélique é co-fundadora. Desde que o centro foi criado, em 2008, mais de 2 mil
mulheres já foram atendidas.
Leia a seguir os principais trechos de
uma entrevista concedida pela irmã Angélique Namaika para jornalistas
brasileiros, que também contou com a participação do ACNUR.
A senhora passou por uma situação
semelhante às das mulheres assistidas pelo Centro para
Reintegração e Desenvolvimento. Como foi essa experiência?
Angélique Namaika: Fui forçada a deixar minha comunidade em 2009, por quatro meses, após um ataque do LRA. Fui para Zungi e fugi quase 100 quilômetros, mata adentro. No primeiro dia estava muito assustada, porque não sabíamos para onde estávamos indo.
Fugimos para um lugar com muitas arvores,
mas não havia nada para comer. Tínhamos que sair em busca de comida, sempre com
o temor de ser capturados pelo LRA.
Quando chovia tínhamos uma preocupação a
mais, porque tudo ficava molhado ao nosso redor. Eu ficava muito angustiada e
cantava uma música para mim mesma, rezando e pedindo pela ajuda de Deus. Só
depois de quatro meses conseguimos retornar para Dungu.
QUAIS OS PRINCIPAIS ABUSOS
REPORTADOS PELAS MULHERES VÍTIMAS DO CONFLITO NO CONGO?
Angélique Namaika: Em primeiro lugar, abuso sexual. Assim que elas são capturadas, as jovens são dadas aos rebeldes como esposas. Ainda sofrem violência física, como espancamento. Uma delas têm seus lábios mutilados. Mulheres e meninas também são submetidas a trabalhos forçados. Alguns meninos voltam com as mãos amputadas.
COMO FAZER PARA QUE O MUNDO TENHA
CONHECIMENTO DESSA SITUAÇÃO?
Angélique Namaika: Parte do meu trabalho é dedicada a divulgar esta situação. Já tive encontros com políticos e formuladores de políticas nos países vizinhos ao Congo, e participei recentemente, em Genebra, dos Diálogos sobre Fé e Proteção promovidos pelo ACNUR. Tive ainda a oportunidade falar no Conselho de Segurança da ONU sobre o problema, falando que as mulheres congolesas precisam de ajuda.
POR QUE VOCÊ OPTOU POR SEGUIR NO
CONGO EM VEZ DE PEDIR REFÚGIO EM OUTRO PAÍS?
Angélique Namaika: Amo meu
país. Nós, freiras da minha congregação, buscamos ficar nos nossos próprios
países. Escolhi ser freira porque foi uma decisão de Deus. Quando eu tinha nove
anos, vi uma freira ajudando as pessoas e decidi que também iria me tornar uma
freira. Deus ouviu isso.
Angélique Namaika: Minha
situação como deslocada interna me inspirou a entendê-las e a querer ajudar.
Quando vejo essas mulheres, lembro que eu não tinha ninguém que me ajudasse.
Então, vou todos os dias aos lugares onde elas estão.
Uma coisa muito importante é que elas estejam juntas com outras mulheres. Assim, elas podem ser ouvidas e dividir suas experiências. Suas histórias são horríveis, e elas são muito vulneráveis.
PODERIA CONTAR UMA DAS HISTÓRIAS
DAS MULHERES AJUDADAS PELO CENTRO PARA REINTEGRAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO?
Angélique Namaika: Uma garota
foi sequestrada aos 14 anos e passou um ano e meio capturada, vivendo na selva.
Quando saiu, estava grávida e não encontrou apoio, e ficava no mercado local de
Dungu pedindo ajuda.
Fui procurada por moradores da cidade e
encontrei a menina. Inicialmente, ajudei-a com comida e atendimento médico. Vi
também que ela precisava se tornar independente para reconstruir sua vida. Ensinamos
a fazer pão e a costurar.
Outro problema é que ela foi rejeitada pela mãe, que dizia que ela era culpada por ter sido raptada pelo LRA. Busquei reconciliá-la com sua família, mas a jovem estava tão desorientada que deixou o bebê comigo e voltou para a selva. Um mês depois, quando ela voltou para Dungu, ela foi aceita novamente por sua família. Ela e sua mãe se reconciliaram e hoje estão bem. A boa noticia é que a jovem se casou e tem um segundo filho. Ela trabalha fazendo pães e ganha recursos suficientes. Ela está feliz.
COMO A SENHORA RECEBEU A NOTÍCIA
DE TER SIDO A GANHADORA DO PRÊMIO NANSEN PARA REFUGIADOS?
Angélique Namaika: Foi uma
surpresa para mim. E me deixou muito feliz! Estou muito agradecida. Uma vez,
chorei porque estava fazendo meu trabalho sozinha. Quando ganhei o prêmio,
pensei: ‘Então o mundo sabe sobre esse pequeno trabalho que eu faço?’. Então vi
que esse trabalho não é só meu, ele também é de Deus, que me dá coragem para
seguir ajudando essas mulheres. Esse prêmio também é delas, e vai ajudar no
trabalho que elas estão fazendo. Eu peço a Deus para não ficar orgulhosa, mas
seguir agindo de forma simples e ajudando essas mulheres. Agradeço muito às
equipes do ACNUR e vejo que não estou sozinha. Se eu conseguir ajudar apenas
uma mulher, já será um sucesso. Peço a Deus que me mantenha uma pessoa simples
e que possa continuar ajudando essas mulheres.
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Por Júlia Tavares, de Brasília.
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