A APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS POR MISSIONÁRIOS
Autoria da Missionária: Marta Kerr Carrikeri
Tendo em vista o momento histórico em que vivemos, em que Deus tem chamado
homens e mulheres em todo
Brasil para levarem as boas novas do Reino a outras culturas,
creio que seja oportuno considerarmos um dos elementos essenciais para
atravessarmos as barreiras culturais que nos separam desses diversos grupos: a aprendizagem
de língua em idade adulta.
Porque é necessário aprendermos a língua do povo a quem queremos
nos dirigir? Cursos de missiologia, e principalmente de antropologia e missões,
têm nos conscientizado da importância de apresentarmos o Evangelho de maneira
relevante nas diversas culturas. Precisamos revelar às etnias não alcançadas o
ato redentor de Cristo, a vida nova e eterna que nEle temos de maneira que
possam compreender, e sem exigir que o comportamento resultante dessa revelação
seja igual ao nosso, enquanto apenas um comportamento culturalmente definido
como apropriado.
Ora, como saberemos quais comportamentos são relevantemente
apropriados como conseqüência do evangelho sem uma longa exposicão à cultura e
um entendimento profundo da visão de mundo do povo? Isso só pode ser conseguido
se nos dispusermos a ouvir o que eles têm a dizer, o que implica em conhecer
bem sua língua.
Por isso, ao sairmos do Brasil, precisamos ir com uma atitude
formada de que temos muito a aprender. É essencial que nos lembremos que Deus
não somente ama o povo que deve ser alcançado, Ele já está presente em seu
meio, pelo simples fato de ser onipresente, e que é exatamente por causa desse
amor que Ele nos envia.
Não somos nós que levamos Deus a um povo, Ele já está lá, e
portanto é Deus que nos leva a eles. E esse mesmo Deus é quem vai nos capacitar
a enfrentar a tarefa de aprendermos a língua e compreendermos a cultura desse
povo de maneira a comunicarmos as boas novas de Seu amor por palavras e ações.
CAPACIDADE OU ESFORÇO
Todos nós somos capazes de aprender línguas e já provamos isso
pelo simples fato de que falamos pelo menos uma língua. É comum a idéia de que
crianças em todo o mundo, em condições normais, "aprendem a falar” em
aproximadamente dois a três anos. Apesar de continuarem seu desenvolvimento
linguístico até a adolescência, com uma média de dois a três anos já encantam
seus pais e os que com eles convivem com sua capacidade de expressão.
A maneira como esse processo de aquisição de língua se dá tem
sido motivo de um longo debate entre lingüistas, mas o fato é que é impressionante
a "facilidade" com que a maioria de nós aprendeu a se expressar quando
criança.
No entanto, quando chegamos à idade adulta e queremos aprender
outra língua, a coisa parece não ser tão fácil. Horas de estudo, listas de
palavras e regras gramaticais são memórias não tão agradáveis para muitos de
nós. Mas, se fomos capazes de aprender nossa própria língua, o que aconteceu
que temos tanta dificuldade de aprender outra?
Decerto muita coisa! Em primeiro lugar, como adultos, nossas
necessidades já são supridas, ou seja, se não aprendermos a outra língua e não
mudarmos de ambiente, continuaremos a sobreviver perfeitamente.
Em segundo lugar, nossa experiência de aprendizagem de segunda
língua se limita na maioria das vezes à escola e suas exigências.
Em outras palavras, nossa motivação que antes era a sobrevivência
foi muito diminuída. E língua que antes era um meio para o relacionamento com
outras pessoas foi reduzida a um objeto de estudo em sala de aula.
Acontece que motivação é exatamente a coisa mais importante na aprendizagem de línguas
e língua é muito mais do que uma "matéria de escola”!
Língua é e sempre será o vínculo que nos liga em sociedade, uma
ponte a outros seres humanos e suas idéias. Portanto não é a falta de capacidade que se evidencia
quando temos dificuldades com uma segunda língua, e sim a falta de uma motivação que gere
um esforço suficiente para que a aprendamos.
Embora existam pessoas com maior aptidão para a aprendizagem de
línguas, autores concordam que havendo motivação suficiente para nos
relacionarmos com umgrupo, isto determinará mais do que qualquer outro fator
nosso sucesso ou não em aprendermos a sua língua.
APRENDENDO A OUVIR
A afirmação de que a motivação é o fator mais importante na
aprendizagem de uma língua é encorajadora. O missionário que vai a outra
cultura deve perceber logo a importância da língua como seu vínculo àquela
sociedade, o que o deveria motivar o suficiente a aprendê-la.
Porém, sem dúvida há outros fatores além da motivação envolvidos
no processo.
O primeiro fator que queremos mencionar é que precisamos e-aprender a ouvir. De acordo com Jean-Yvon
Lanchec,1 ao aprendermos a falar,
perdemos um pouco a capacidade de ouvir. Nossos ouvidos ficam
tão treinados a ouvir os tipos de som de nossa língua que não ouvimos bem os
sons de outras línguas.
Como exemplo, falantes do alemão ouvem bem os sons médios, mal
os sons agudos enquanto que falantes do espanhol ouvem muito bem os sons graves
e falantes do inglês ouvem bem os agudos.
O sotaque em outras línguas nem sempre é uma falha na produção,
quando uma pessoa está tentando falar um som que ouviu. Muitas vezes reflete a incapacidade
de ouvir bem e diferenciar os sons.
Como exemplo podemos citar que muitos brasileiros produzem o
"think” (pensar) do inglês da mesma maneira que produzem "sink”
(afundar), porque em português não temos o som do "th” dessa palavra do
inglês. Como o que ouvimos parece com o "s” inicial das palavras em português,
na hora de produzirmos, utilizamos o "s”.
Se às vezes nem conseguimos ouvir que há uma diferença, como
resolver esse impasse? Creio firmemente que duas coisas são essenciais: a
consciência de que 1 Psico-Linguística e Pedagogia das Línguas, Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1977., precisamos gastar muito mais tempo escutando
atentamente e a ampliação da nossa percepção de sons diferentes. Precisamos
reaprender a ouvir.
Como adultos participantes de diálogos na nossa cultura gastamos
muito tempo falando.
Quando chegamos a outra cultura temos de passar um bom tempo
calados, observando e aprendendo, o que é uma mudança de comportamento à que
temos de nos adaptar.
Para a ampliação de nossa percepção, deveríamos ser expostos à
fonética internacional de modo sistematizado, o que é possível através de um
curso de fonética.
Isso não quer dizer que vamos todos nos tornar professores de
fonética, mas sim que aprenderemos a ouvir as diferenças de modo a
identificá-las nas outras línguas.
Uma vez identificadas as diferenças, teremos de perceber quais
dessas diferenças são importantes na língua que queremos aprender. Diferenças
do tipo acima mencionado, "th” versus "s”, são importantes no inglês.
Sabemos disto porque se produzirmos um ou outro som estaremos
produzindo duas palavras completamente diferentes. Em linguística se diz que
são dois fonemas diferentes. Outras diferenças que precisamos aprender a
escutar são diferenças de ritmo e entonação.
Somente depois de aprendermos a ouvir é que seremos capazes de
conscientemente melhorar
nossa produção desses sons.
Cabe aqui uma observação interessante: existe uma idéia de que
algumas
pessoas têm maior facilidade para aprender línguas. Um bom
ouvido para música às vezes é apontado como causa. Ora, o que é um bom ouvido
para música?
É a capacidade de reproduzir facilmente um som ouvido.
Parece-me, portanto, que além de uma facilidade de escutar
variações nos sons, é muito importante a habilidade de imitar sem inibições.
Pessoas que "pegam” o sotaque dos outros demonstram um desejo
subconsciente de serem parte de um grupo e de serem aceitas via identificação,
fatores que sem dúvida contribuem muito para aprenderem das pessoas
sua língua bem como sua cultura.
APRENDENDO A SER FLEXÍVEL
Como é de se imaginar, aprender a identificar "novos” sons
e produzí-los exige uma maior flexibilidade de nosso aparelho fonador. Nada
como tentar produzir os "r”s do alemão para se entender que o exercício é
indispensável.
Nossos hábitos articulatórios são difíceis de quebrar! Outra
dificuldade criada pelo fato de já
sabermos uma língua é que nos acostumamos a uma estrutura
determinada na gramática e na morfologia.
Em português, numa afirmação, colocamos o sujeito e depois o
predicado,por exemplo—[artigo + substantivo],[verbo + artigo + substantivo].
Outras línguas têm colocações diferentes, gramáticas e
morfologias diferentes.
Se quisermos transformar nossa sentença acima em uma pergunta,
em português basta mudarmos a entonação.
Quem estudou inglês na escola lembra-se que em inglês o normal é
se usar um verbo auxiliar ou então inverter a ordem do verbo e substantivo,
além da mudança de entonação (a seguir:).
O menino chutou a bola (. ou ? , afirmação ou pergunta dependendo da entonação).
The boy kicked the ball. (afirmação).
Did the boy kick the ball?
(pergunta feita usando-se um verbo auxiliar, cuja entonação
também é diferente).
Vemos aqui que um segundo fator na aprendizagem de uma língua é
que precisamos desenvolver uma flexibilidade. O uso correto dessas colocações
diferentes exigem treino. E é aí que o missionário se lembra da escola e
desanima diante da idéia de repetições enfadonhas.
A Dra. Betty Sue Brewster, professora de Aprendizagem de Língua
na Cultura na Escola de Missões do Seminário Fuller, na Califórnia, apresenta
uma alternativa interessante aos que se encontram desencorajados diante dessa
tarefa.
Ela sugere que, além de um treino com um auxiliar, essas
repetições sejam feitas com um
gravador, o que possibilita o treino à qualquer hora. Também
sugere que alguns exercícios sejam feitos na comunidade.
Por exemplo, a pessoa sairia de casa com uma
sentença e um grupo de palavras, escritas num papel. Ao
encontrar as pessoas na rua, diria:
"Estou aprendendo _________(língua) há ____dias.
Tenho algumas palavras escritas nesse papel.
Vou falar uma sentença. Por favor diga uma destas palavras e eu
vou substituir na sentença.
(Aqui a pessoa fala uma palavra e você substitui)
Falei certo?
Muito obrigado (a)!” *Traduzido e adaptado de LEARN, H-4, p.
126.
Estas sentenças ( ou
melhor dizendo, o equivalente a elas na cultura) seriam aprendidas de antemão
de alguém que estaria auxiliando na aprendizagem da língua, e seriam praticadas
com o auxílio do gravador.
Já a estrutura da sentença seria treinada no contato com as
pessoas, através da substituição da palavra no lugar certo da sentença. Sem
dúvida pode ser uma opção bem mais embaraçosa socialmente, no sentido de que a
comunidade vai conhecer os nossos erros, que muitas vezes vão parecer
engraçados.
Mas, por outro lado, o envolvimento com pessoas raramente é monótono!
Solucionaria o problema da monotonia das repetições, e assim
proporcionaria um meio de se exercitar as novas estruturas para
uma maior flexibilidade nesta área.
Flexibilidade é portanto uma qualidade que precisamos possuir de
maneira a expressarmos em estruturas diferentes e sons diferentes aquilo que
queremos dizer.
APRENDENDO VALORES NOVOS
Se nossa tarefa se limitasse a conseguirmos os dois tipos de
flexibilidade acima mencionados as coisas seriam bem mais fáceis. É que,
voltando à idéia de que temos de comunicar de maneira relevante na cultura,
precisamos também do tipo de flexibilidade que nos capacita a compreender os
valores dessa cultura a que nos propomos ministrar.
Temos de compreender o modo como essa língua é usada em sociedade.
Alguns exemplos que vêm à mente são, em primeiro lugar, o uso de
palavras com significado específico em certos contextos. Como ilustração,
quando minha família começou a conhecer meu marido, que é americano, um dia nós
o convidamos para assistir televisão. Lá pelas nove horas, ele disse que já ia
embora.
Minha mãe, como boa brasileira disse: "É cedo!” Ele, não
querendo quebrar nenhum costume desconhecido, ficou um pouco mais. A cena se
repetiu até mais ou menos meia-noite, quando ele desconfiou que o significado
da afirmação era uma questão de educação.
É verdade que a estas alturas o "É cedo” deveria estar bem
mais fraco. Outro exemplo é uma questão controvertida atualmente nos Estados
Unidos. É a questão do uso de linguagem inclusiva.
Existe, devido ao movimento feminista, um número crescente de mulheres
que se ofendem pelo uso de palavras como "irmãos” para homens e mulheres.
Por isso, mais pessoas têm usado "irmãos e irmãs” (ou até invertendo a
ordem para "irmãs e irmãos”) nas igrejas de modo a não
ofendê-las.
No primeiro caso o missionário teria que aprender o uso de
certas expressões de maneira a saber se comportar na sociedade.
No exemplo acima, o risco de ofender alguém não seria tão
grande. No segundo caso, o missionário precisaria compreender que se quisesse
comunicar a um certo grupo, teria que usar palavras específicas, de modo a não
ofender.
Aprender a usar a língua no contexto social é indispensável àcomunicação.
objetivos: prender e servir.
Compreender como as pessoas se relacionam em sociedade e se
submeter a essas regras de relacionamento não é tarefa fácil. O que é social geralmente
é coercitivo e sem explicações. É assim porque é assim, produto de costumes e
história que se misturam em processo cultural.
Uma atitude de crítica ou de saudosismo é compreensível, já que
geralmente somos socializados em nossa própria cultura de maneira absoluta, mas
é também pouco produtiva, para não dizer destrutiva à comunicação, se
justificarmos essa atitude e a deixarmos estabelecer raízes.
Comunicar é se colocar em pé de igualdade, se colocar em comum,
o que é impossível se concentrarmos nossas atenções nas diferenças entre as
culturas, e na improbabilidade de nos adaptarmos às exigências de uma
re-socialização.
CONCLUINDO
Escrevi esse artigo com a intenção de despertar idéias sobre
como podemos nos preparar para a aprendizagem de outra língua, tendo em mente
as possibilidades apresentadas ao missionário transcultural.
Muitas das idéias aqui expostas não são minhas próprias, mas de
autores diversos, entre eles os Brewsters, Smalley, Hesselgrave, etc...
Eu mesma sou missionária brasileira e bilíngüe, tendo que usar o
português ou o inglês, dependendo do ambiente.
Em termos de aprendizagem, nunca devemos nos contentar com o que
pensamos saber de uma língua. Sempre há possibilidade de se melhorar. Sempre
nos expressaremos melhor em uma ou outra língua, dependendo do assunto que
tratamos e nossa dedicação a tentarmos compreendê-lo em determinada língua.
Portanto, devemos sempre conservar nossa flexibilidade quanto a
novos sons, novas estruturas e novas maneiras de se enxergar e interpretar o
mundo, de modo a darmos o melhor de nós na comunicação do Evangelho a outras
culturas.
NOTAS FINAIS
Marta Carriker é missionária brasileira da Igreja Presbiteriana
(EUA) desde 1979. Compõe músicas evangélicas brasileiras, e é professora de
"Linguística e Aprendizagem de Línguas” para futuros missionários no
Centro Evangélico de Missões. A Aprendizagem de Línguas por
Missionários.
Marta Kerr Carrikeri
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